sábado, 15 de agosto de 2009

O tempo e a paciência


As circunstâncias do meu convívio exigiram que eu exercitasse a virtude da paciência esta semana. Tenho para mim que a vivi como aos seres humanos sói viver suas virtudes, assim como seus vícios: com o seu quinhão de alegria e de dor.
Sobretudo a paciência é uma virtude difícil de ser conquistada, porque sua expressão mais comum se liga ao tempo, ou seja, somos impacientes quando não esperamos o tempo necessário para que cada coisa tome o seu lugar devido, quando nos desesperamos somos impacientes.
Quando meu pai estava muito doente, tomado pela dor e sofrimento ele se desesperava e se asperejava, ou seja, era violento. Nesses momentos, eu, enfermeiro principiante, sempre pensava que aos doentes de leito de hospital se chamam pacientes porque é essa a virtude última e única que se pede a quem sofre nessa condição. Mas então, é que, sim, a coisa toda é dificílima. Aos moribundos, no entanto, é preciso dar consolo, e, por essa razão, desejamos que os médicos, enfermeiros e parentes sejam, por sua vez, pacientes com o paciente.

Mas o que dizer da paciência necessária com aqueles que nos aborrecem?

Acredito que um bom combustível para se ter paciência com esse aborrecido é ter a profunda certeza de nossa própria inocência, ou seja, não tomar para si toda a culpa que o jogo das relações bem ou mal nos impõe. É também necessário ausentar-se em espírito quando ouvir uma calúnia, o que corresponde a viver a prece, dirigida ao além do além do além, em que tão somente se solicita: “Fecha meus ouvidos a toda calúnia/Guarda minha língua de toda maldade.” E, por ainda não pertencermos à categoria dos Santos, dar também umas boas risadas durante a situação vexatória.
Na verdade, estou a contar esse episódio banal e cotidiano apenas como pretexto, pois o que tal situação lembrou-me foi de uma crônica linda de José Saramago e que nos fala com todo o poder de sua literatura premiadíssima justamente acerca da relação entre o tempo e a paciência.

Acho que todo o mundo deveria conhecer esse texto:

O Tempo e a Paciência - José Saramago

Se alguém me perguntar o que é o tempo, declaro logo a minha ignorância: não sei. Agora mesmo ouço o bater do relógio de pêndulo, e a resposta parece estar ali. Mas não é verdade. Quando a corda se lhe acabar, o maquinismo fica no tempo e não o mede: sofre-o. E se o espelho me mostra que não sou já quem era há um ano, nem isso me dirá o que o tempo é. Só o que o tempo faz.
Que me sejam perdoadas estas falsas profundezas. Nada em mim se dispunha a coxear atrás do Einstein se não fosse aquela notícia de França: no rio Saône toda a fauna se extinguiu por acção de produtos tóxicos acidentalmente derramados nele, e cinco anos serão necessários para que essa fauna se reconstitua. O mesmo tempo que envelhece, gasta, destrói e mata (boas noites, espelho), vai purificar as águas, povoá-las pouco a pouco de criaturas, até que cinco anos passados o rio ressuscite da fossa comum dos rios mortos, para glória e triunfo da vida. (E depois casaram, e tiveram muitos afluentes.)
Não iria longe esta crónica se não fosse a providência dos cronistas, a qual é (aqui o confesso) a associação de ideias. Vai levando o rio Saône a sua corrente envenenada, e é neste momento que uma gota de água se me desenha na memória, como uma enorme pérola suspensa, que devagar vai engrossando e tarda tanto a cair, e não cai enquanto a olho fascinado. Rodeia-me um fantástico amontoado de rochas. Estou no interior do mundo, cercado de estalactites, de brancas toalhas de pedra, de formações calcárias que têm a aparência de animais, de cabeças humanas, de secretos órgãos do corpo - mergulhado numa luz que do verde ao amarelo se degrada infinitamente.
A gota de água recebe a luz de um foco lateral e é transparente como o ar, ali suspensa sobre uma forma redonda que lembra um bolbo vegetal. Cairá não sei quando, da altura de seis centímetros, e vai escorregar na superfície lisa, deixando uma infinitesimal película calcária que tornará mais breve a próxima queda. E porque nós parámos a olhar a gota de água, o guarda de Aracena disse: "Daqui a duzentos anos as duas pedras estarão juntas."
É esta a paciência do tempo. Na gruta imensa, o tempo está aproximando duas pedras insignificantes e promete a silenciosa união para daqui a duzentos anos. À hora a que escrevo, pela noite adentro, a caverna está decerto em escuridão profunda. Ouve-se o pingar das águas soltas sobre os lagos sem peixes - enquanto em silêncio a montanha verte a gota vagarosa da promessa.
A paciência do tempo. Duzentos anos a fabricar pedra, a construir uma pequena coluna, um mísero toco em que ninguém reparará depois. Duzentos anos de trabalho monótono e aplicado, indiferente às maravilhas que cobrem as paredes altíssimas da gruta e fazem rebentar flores de pedra do chão. Duzentos anos assim, só porque assim tem de ser.
Falo do tempo e de pedras e, contudo, é em homens que penso. Porque são eles a verdadeira matéria do tempo, a pedra de cima e a pedra de baixo, a gota de água que é sangue e é também suor. Porque são eles a paciente coragem, e a longa espera, e o esforço sem limites, a dor aceita e recusada - duzentos anos, se assim tiver de ser.

5 comentários:

  1. Essa crônica de Saramago é, desde há muitos anos, quando vc me apresentou, uma "leitura de cabeceira"; volta e meia, dou de presente pra alguém. Obrigada por pô-la na roda!
    No mais, é disso aí que trata o Zen-Budismo, né? Da temperança, essa qualidade de "temperar" a relação tempo/paciência. Afinal, não se trata de mera resignação com o que nos incomoda ou vexa, "dar a outra face" não é submeter-se à injúria, mas justamente deixar o injuriante com o acontecimento nas mãos, perplexo diante da falta de revide, da recusa em alimentar a atitude incoveniente, e da sua própria sombra.

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  2. a luciana falou tão bonito que acho q nada me resta dizer..

    bj

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  3. Pois é Felipe,
    Como nos ensina a psicanálise, a sublimação pode mesmo ser muito útil! rsrsrs

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