quinta-feira, 13 de agosto de 2009

As Musas de Mia Couto





Como já disse aqui, estou lendo Antes de nascer o mundo. Nesse momento, estou quase terminando o Livro dois: A Visita. Essa parte do romance está sendo ainda mais determinante, do meu ponto de vista, uma vez que é toda ela tomada pela visita de uma personagem feminina. Trata-se de uma portuguesa, que chegou naquelas paragens da África em busca do marido que a abandonara. Na passagem em que o menino protagonista da história lê escondido seus papéis, ele encontra, por exemplo, esse trecho do diário da personagem:

E escrevo como as aves redigem o seu voo: sem papel, sem caligrafia, apenas com luz e saudade. Palavras que, sendo minhas, não moraram nunca em mim. Escrevo sem ter nada que dizer. Porque não sei o que te dizer do que fomos. E nada tenho para te dizer do que seremos. Porque sou como os habitantes de Jerusalém. Não tenho saudade, não tenho memória: meu ventre nunca gerou vida, meu sangue não se abriu em outro corpo. É assim que envelheço: evaporada em mim, véu esquecido num banco de igreja.

Um outro aspecto bem interessante da presença feminina no romance está no fato de que para cada capítulo e também antes de cada livro, Mia Couto seleciona suas epígrafes. Há apenas dois casos em que as epígrafes são vozes masculinas, por exemplo, a que antecipa todos os livros, a epígrafe do romance, é de Herman Hesse e a que antecipa o Livro dois, de autoria de Jean Baudrillard e que é belíssima: Aquilo que chamam "morrer" não é senão acabar de viver e o que chamam "nascer" é começar a morrer. E aquilo que chamam "viver" é morrer vivendo. Não esperamos pela morte: vivemos com ela perpetuamente.
Todas as demais são trechos de poemas de três mulheres poetas da Língua Portuguesa: as brasileiras Adélia Prado (1935) e Hilda Hilst (1930-2004) e a portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e, ainda, uma única de Alejandra Pizarnik (1936-1972), poeta argentina. Elas antecipam cada capítulo como musas inspiradoras, ao menos foi como a mim pareceu. Selecionei algumas dessas perólas do longo colar dessas epígrafes e que atravessa o livro. Que sirvam de aperitivo para a leitura do romance, uma vez que uma epígrafe está sempre em diálogo profundo com o texto, que por sua vez antecede:
Uma noite de lua pálida e gerânios
ele virá com a boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobro
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?
Adélia Prado

Yo me levanté de mi cadáver, yo fui en
busca de quien soy: Peregrina de mí, he
ido hacia la que duerme en un país al
viento.
Alejandra Pizarnik

Não me procures ali
onde os vivos visitam
os chamados mortos.
Procura-me dentro das grandes águas.
Nas praças num fogo coração,
entre cavalos, cães,
nos arrozais, no arroio,
ou junto aos pássaros
ou espelhada num outro alguém,
subindo um duro caminho.
Pedra, semente, sal passos da vida.
Procura-me ali.
Viva.
Hilda Hilst
Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi viver em pleno vento
Sophia de Mello Breyner Andresen




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