segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Antes de nascer o mundo


Quando falei aqui pela primeira vez em Mia Couto eu lia Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra.
Agora leio Antes de nascer o mundo, sua obra mais recente. Portanto, o primeiro Mia Couto que li, e que fora lançado em 2002, despertou-me o interesse pelo escritor moçambicano, já esse, de agora, foi lançado ainda esse ano, ah eu o estou sentindo muito diferentemente. Oxalá aos deuses que protegem o prazer sempre diferente da leitura dos diferentes romances de um autor.
Nesse caso, muito provavelmente porque o tom da narrativa é absolutamente denso, as personagens estão mergulhadas, inicialmente, na solidão masculina que, ao que parece, ao menos se confiarmos no que nos revela o romance, é bem mais dura e difícil de se viver.
O romance divide-se em três "Livros": Livro Um - A Humanidade, Livro Dois - A Visita e Livro Três - Revelações e Progressos. Ainda estou no Livro Um e não vejo modo da leitura progredir, há sim um processo lentíssimo de leitura que se faz, porque assim o livro está a exigir que o seja.
Posso reiterar tudo o que dissera antes acerca do autor e seu estilo inconfundível. Ou seja, do reencontro que ele possibilita entre mim e uma língua portuguesa que eu desconhecia. E, sobretudo, de um fenômeno específico que seus livros permitem durante a experiência da leitura: o da leitura pausada, necessariamente.
Contudo, no caso desse romance, especificamente, o que faz com que assim o seja é o próprio tema duríssimo da relação entre um pai viúvo, misógino sem que saibamos ao certo o porquê, triste, nauseabundo de solidão, com seus filhos pequeninos ainda e carentes ao extremo, abandonados como estão na prisão de um mundo recriado para ser um lugar anterior ao nascimento do próprio mundo, ainda que seja posterior a um mundo findo.
Um trecho, para que vocês entendam o tipo de experiência difícil de leitura a que estou aludindo:

Na noite seguinte, fui desperto pelo rugido dos leões. Estavam perto, talvez rondassem o curral. No escuro do quarto, me abracei a mim mesmo para adormecer. Ntunzi dormia a sono solto e eu, incapaz de domar o medo, fui procurar abrigo debaixo da cama de meu pai. Naquela clandestina intimidade, abraçado ao frio do chão, me embalei com o ressonar dele. Pouco depois, porém, fui surpreendido e ele me expulsou com severidade.
- Pai, por favor, me deixe, só uma vez, dormir junto consigo.
- Onde se dorme junto é no cemitério.
Regressei ao meu leito, desprotegido, escutando, agora mais próximos, os rugidos dos felinos. Naquele momento, tropeçando indefeso pelo escuro, odiei pela primeira vez o meu velho. Quando me anichei na cama, a fúria me fervia no peito.
- Vamos matá-lo?
Ntunzi se apoiava na cama sobre o cotovelo e aguardava a minha resposta. Esperou em vão. A voz se me havia afogado na garganta. Ele insistiu:
- O cabrão matou a nossa mãe.
Sacudi a cabeça, em desesperada negação. Não queria ouvir. E suspirei para que os rugidos dos leões se voltassem a escutar e se sobrepusessem à voz do meu irmão.
- Não acredita?
- Não - murmurei.
- Não acredita em mim?
- Talvez.
- Talvez?
Esse "talvez" me sobrou como um peso na consciência. Como podia admitir a possibilidade de meu pai ser um assassino? Durante tempos tentei aliviar-me dessa culpa. E congeminei atenuantes: se algo tinha sucedido, meu pai deve ter agido contra a sua vontade. Talvez tivesse sido, quem sabe, em ilegítima defesa? Ou talvez tivesse matado por amor e, na execução do crime, morrera ele mesmo pela metade?
A verdade é que, no trono absoluto da sua solidão, meu pai se desencontrava com o juízo, fugido do mundo e dos outros, mas incapaz de escapar de si mesmo. Talvez fosse esse desespero que o fazia entregar a uma religião pessoal, uma interpretação muito própria do sagrado. Em geral, o serviço de Deus é perdoar os nossos pecados. Para Silvestre, a existência de Deus servia para O culparmos pelos pecados humanos. Nessa fé às avessas não havia rezas, nem rituais: uma simples cruz à entrada do acampamento orientava a chegada de Deus ao nosso sítio. E a placa de boas-vindas, encimando o crucifixo: "Seja bem-vindo, ilustre visitante!".
- É para Deus saber que já lhe perdoámos.
A esperança da aparição divina suscitava no meu irmão um sorriso de desdém:
- Deus? Aqui é tão longe, que Deus se perde no caminho.

Eu não falei que era difícil ? O Livro Um, todo ele é essa dureza. Mas a lição do livro (penso que todo livro encerra uma lição) é o tempo todo prometida, daí, sei que virá. Ele exige as tais pausas, mas também instiga e mantém o desejo desperto no leitor: queremos saber o seu fim, ou seja, qual será o fecho disso tudo que é assim tão dolorosamente difícil, afinal?

3 comentários:

  1. sempre muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito bom ....

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  2. Que ótimo, todo o post. Seus pontos de vista, tão bem colocados (escreve tão bonito!), e o trecho escolhido, de chorar. Doloroso sim, mas não duro. (a mim pelo menos não me pareceu assim, não pelo trecho) Difícil e duro, se considerarmos as almas doloridas, mas sem essa dor, essa verdade, não tocaria tanto, nem seria tão bonito.

    De novo me deixou curiosa, e um dia, tendo me organizado melhor nas minhas leituras embaralhadas, incluo esse e aquele outro na lista. Ou os incluo assim mesmo na minha bagunça!

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  3. Slowdafb, fico sempre muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito feliz quando vc faz um comentário assim generoso! Mas Mia Couto é mesmo muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito bom! ;D

    Kika,
    Que delícia poder despertar o desejo da leitura de um livro. Era exatamente o que eu queria provocar nas pessoas, que bom que, ao que parece, consegui. Se vem de vc eu confio que sim, a missão de falar com prazer de um texto que me dá prazer foi cumprida!

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