quarta-feira, 26 de agosto de 2009

As cartas de Frei Betto


Quando a ditadura militar comandava o Brasil eu era criança. Na verdade, nasci em plena ditadura, vejam que coisa horrível para um ser humano e brasileiro. Fui crescendo e, já adolescente, sempre me senti mais à vontade com gente que não gostava dos militares do que com aqueles que defendiam o tal regime. Depois, veio o período da abertura e da Campanha das Diretas: sim, eu estava lá na Praça da Sé, nas históricas manifestações que reivindicavam a democracia.
O tempo passou e, hoje, as novas gerações veem tudo isso como uma passagem da história do Brasil já distante, longínqua mesmo, e da qual pouco se conhece, a não ser através da letra morta dos livros didáticos de história. Eu, embora não tenha sido jovem ou adulto nos anos de verdadeiro horror do regime, quando adolescente, já sabia do sofrimento que gente boníssima passou ou ainda passava, por se opor ao regime. Daí que, quando, recentemente ganhei o livro Cartas da prisão - 1969-1973, de Frei Betto, fiquei com pouca coragem de começar a leitura. Pensei: vai ser triste, sofrido, não será agora. E, assim, o livro ficou uns dois meses no silêncio da estante. Ontem, eu precisava ler alguma coisa (graças!) e iniciei a leitura dessas cartas que, segundo Alceu Amoroso Lima, representam um dos mais altos documentos de autenticidade humana e de beleza literária que jamais se escreveram no Brasil. Estou muito no começo, mas já posso concordar com Tristão de Athayde, sim são de uma autenticidade, humanidade e beleza como poucas vezes pude encontrar em escritos de brasileiros. Todas as cartas são assim mesmo.
Deixo aqui uma amostra do grau de espiritualidade e pureza desse grande escritor, pois mesmo estando preso e sofrendo as provações todas de quem está nessa condição, ele conseguiu, por exemplo, escrever para uma criança e com toda a delicadeza: única exigência de uma missiva para tal destinatário. É o que podemos testemunhar lendo essas duas cartas que ele escreveu para o seu irmão caçula, o Tunico (Antônio Carlos Vieira Christo Filho): como inferimos do teor das cartas, uma criança à época.
Tunico,
Gostei muito de sua carta, do desenho que fez do cometa, dos ovos de Páscoa. Vejo que vai bem nos estudos. Não tive, como você, a oportunidade de ver o cometa: naquela noite, me levantei às 4 horas para vê-lo, mas o céu estava encoberto, sem uma estrela. Um dia o cometa voltará e vamos vê-lo juntos. Agora passou rápido, Deus mandou-o só dar uma olhada para ver como estamos. O cometa veio de madrugada, quando todos estavam deitados, e fiscalizou a Terra. Não viu guerra, nem fome, nem desastre, nem briga, nada que há de ruim, porque todos dormiam quietinhos. Viu apenas os olhos das crianças que acordaram de noite para olhá-lo. E os olhos das crianças estavam cheios de luz e alegria. Aí o cometa foi girando, girando, passou pelos Estados Unidos, pelo México, pelo Brasil, pela Europa, pelo Japão (viu os olhinhos apertados dos japonezinhos), e depois voltou para junto de Deus. E ao chegar no céu não encontrou Deus. Soube que Deus havia ido morar no coração das crianças e dos pobres. Então o cometa mandou um recado a Deus, dizendo que tudo na Terra estava bem, todos se comportavam direitinho. Deus ficou satisfeito e disse ao cometa que ele podia descansar até o outro ano, quando voltaria à Terra. Aproveitando as férias, o cometa foi passear em Marte.
Feliz Páscoa para você. O menino Jesus mora em seu coração. Um abração de tamanduá.
Tunico,
Fiquei feliz em receber sua carta. Você escreve muito bem e com ótima letra. Faça sempre ditado e cópia.
Conhece a estória do rei que fez um concurso para saber quem era capaz de descrever, com menos letras possíveis, as maravilhas do Universo? Muitos concorreram. Um sábio escreveu um livro sobre a natureza: o mar, as pedras, a terra, o ar, o fogo, as plantas, os bichos, o ser humano. Outro descreveu as sete maravilhas do mundo: a muralha da China, o templo de Diana em Éfeso, as pirâmides do Egito etc.
Cada sábio escreveu sobre o que mais admirava. O rei, ao final do concurso, recebeu pilhas e pilhas de papéis, contendo as inúmeras descrições. Leu uma por uma, para escolher a melhor. No meio de toda aquela papelada, encontrou um papelzinho, onde estava escrito: ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ. Viu que, com as 26 letras do alfabeto, todas as maravilhas do Universo podem ser descritas em muitas línguas, formas e estilos. Viu também que, se essas letras não existissem, muitos não poderiam se comunicar por escrito com os semelhantes. Chamou o sábio que escrevera o alfabeto e deu a ele o prêmio do concurso. A mão da princesa, sua filha. Os dois casaram e viveram felizes para sempre.
Um abraço tamandualesco.
Penso que esse é o testemunho de um verdadeiro educador, em sua lição de amor. ;-D

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