sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Não tem o que dizer? Faça um elogio.

Ontem, alguém, que eu mal conheço, encontrou-me no elevador e vendo duas marcas de ferimentos no meu braço, exclamou:

- Foi briga isso?

Sempre que ouço uma frase absurda, invasiva e de mal gosto dirigida a minha pessoa eu não me contenho: começo a rir [acho até que é um cacoete, do tipo nervoso]. Dessa vez, após o riso, justifiquei:

- Não, foi um acidente doméstico, queimei-me no forno do fogão de casa. ;-p

Acho incrível esse tipo de situação. Parece-me algo tão patético! A única validade de sua ocorrência é que podemos tirar alguma lição desse tipo de episódio. Eu procuro ir colecionando esses desagravos gratuitos de outrem para comigo para que eu mesmo possa jamais fazê-los a outrem. Sim, porque querer que essas pessoas não o façam é tolice. Cada qual faz o que pode fazer. Aliás, é uma questão de educação. Se pensarmos bem, jamais deveríamos emitir uma frase que possa desagradar nosso interlocutor. Ainda mais assim, em pleno elevador, e a partir da visão de uma pista tão falsa, como as queimaduras no meu braço...

Eu procuro de coração, nessas situações sociais em que absolutamente nada precisa ser dito, mas podendo fazê-lo, tão somente lançar um elogio, como:

- Que linda esta sua blusinha de estampa petit poá!

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O desassossego dadivoso de Fernando Pessoa

Acabei de ganhar um livro! \o/ Não é um livro qualquer. É um de Fernando Pessoa. E não é um livro qualquer de Pessoa, é o Livro do Desassossego. Fernando Pessoa vivia uma depressão a que chamou "profunda e calma" quando o escreveu. Para quem não sabe, trata-se de um livro de prosa. Eu nunca o li, só conheço a poesia de Pessoa. Já espero uma prosa profundíssima e poética. Richard Zenith diz, na introdução, que  Pessoa trabalhou nesta obra  durante o resto da vida, mas quanto mais a "preparava", mais inacabada ficava. Inacabada e inacabável. Sem enredo ou plano para cumprir, os seus horizontes foram alargando, os seus confins ficaram cada vez mais incertos, a sua existência  enquanto livro cada vez menos viável - como, aliás, a existência de Pessoa enquanto pessoa.
Imaginem só o que não deve ser a experiência de ler um livro assim, escrito como se fora um testamento da própria condição humana do poeta?

Para tanto, ou para que possam ter um aperitivo dessa experiência, dois excertos, de páginas do Livro do Desassossego, as quais abro ao acaso (penso que essa atitude tem tudo a ver com Pessoa! ;-D):

A vida é para nós o que concebemos nela. Para o rústico cujo campo próprio lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe ainda é pouco, essse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade, não possuímos mais que as nossas próprias sensações; nelas, pois, que não no que elas vêem, temos que fundamentar a realidade da nossa vida.
Isto não vem a propósito de nada.(...)

Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo.
Na mocidade somos dois: há em nós a coexistência da nossa inteligência própria, que pode ser grande, e a da estupidez da nossa experiência, que forma uma segunda inteligência inferior. Só quando chegamos a outra idade se dá em nós a unificação. Daí a acção sempre fruste da juventude - devida, não à sua inexperiência, mas à sua não-unidade.
Ao homem superiormente inteligente não resta hoje outro caminho que o da abdicação.

Ah, se todo deprimido fosse assim como Fernando Pessoa!

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Mai Fujimoto

Sabe quando você está muito muito cansado, com sono e desejando paz e silêncio? Eu estou assim, agora mesmo. As demandas físicas a que me referi são insistentes, mas terão de permanecer ainda por algumas horas sem serem saciadas, portanto, a paz e o silêncio do meu quarto devo encontrar somente mais tarde. Ossos do ofício, of course. Não estou triste e nem aborrecido com esse dia trabalhoso que acabei por ter, é tão somente fadiga. Diga-se de passagem que nesse estado, quase de letargia, não poderia  postar nada que pedisse muita reflexão, ou raciocínio. Assim, fui em busca de algo suave para compartilhar com todos que visitam esse sítio.
Vejam que surpresa boa: estou encantado com essas imagens que encontrei no artreview  Essa artista conquistou-me com seu trabalho. Pode haver algo mais suave e pleno de significado? Trata-se de Mai Fujimoto, ela é uma artista de Santo André - SP. É possivel notar nessas imagens um evidente acento oriental. No entanto, mais do que isso, percebo que se trata de um trabalho que, verdadeiramente, intriga por sua simplicidade e seu aspecto contemplativo... Creio que se trata de algo que tão somente se alcança a partir de um refinamento interior, ou seja, algo que não poderia ser alcançado por  qualquer um, não é mesmo?


Sinto-me mais descansado e em paz, sem dúvida.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

J.M. Coetzee e seu Homem lento

Enquanto vivo, leio. Há muitas atividades prazerosas nessa vida. As que dizem respeito ao prazer físico são imediatamente identificáveis: comer, dormir etc. Nesse etc. cabe uma pletora de atividades, não é mesmo? Mas, eu tenho para mim, as atividades intelectuais são ainda mais prazerosas. O físico participa dessas últimas como instrumento. Afinal, eu preciso sentir-me bem, fisicamente, para ler, por exemplo. Não devo estar com sono, ou com fome, ou cansado. No entanto, ontem eu estava em luta noturna com meu sono. E isso porque eu estava lendo Homem lento, de J.M.Coetzee e já era mais de meia-noite. Mas como eu poderia abandonar Paul Rayment e Marianna justamente naquela hora!? São as personagens desse livro.




Coetzee é prêmio Nobel e, sim, eu não sabia disso e nem o conhecia, uma vez que nunca lera nada desse premiadíssimo escritor sul-africano e que, atualmente, mora na Australia. A história do romance, inclusive, se passa nesse país. No início do livro, temos a cena do atropelamento de Paul Rayment, um homem com mais de sessenta anos e que, por conta disso (ter sido atropelado e ter mais de sessenta nos), tem uma perna amputada. Solitário, passa a viver essa nova experiência, com todas as agruras de quem é obrigado a mudar o modo de viver, a partir de uma fatalidade. Qualquer outra pessoa criando uma história, tendo como princípio esse tipo de situação, poderia pecar por excesso: de sentimentalismo, ou de pieguice e sabe-se lá do que mais! Nesse caso, não. Coetzee consegue prender o leitor o tempo todo na teia de reflexões e experiências cotidianas da personagem. O melhor de tudo é o foco narrativo do texto, pois temos um narrador em 3a pessoa, que conta a história, mas há momentos que já não sabemos mais quem está falando: ocorre as tais focalizações, em seus desvios. Então, ora é a personagem quem está falando em meio à fala do narrador, ora quem fala é o próprio narrador como se fosse a personagem, ou ainda por ela, ou seja, contar uma história torna-se uma variada combinação de enunciadores na teia narrativa.

O tal trecho que não me deixava fechar os olhos para o prazer físico do sono era quando Rayment com os olhos vendados (por exigência da parceira) se encontra com Marianna, que, por sua vez, é deficiente visual, para a primeira experiência sexual, após o acidente. Conheçam esse excerto e vejam se eu não tenho razão de permanecer acordado e lendo Coetzee:

Quanto tempo faz que ela perdeu a visão? Será decente perguntar? E será decente passar para a próxima pergunta: se fez amor desde que aconteceu?Foi a experiência que ensinou a ela que seus olhos devastados aniquilarão o desejo de um homem?
Eros. Por que a visão do belo chama à vida? Por que o espetáculo do horrendo estrangula o desejo? Será que a relação com o belo nos eleva, nos torna pessoas melhores, ou será abraçando os doentes, os mutilados, os repulsivos que melhoramos a nós mesmos? Que perguntas! Será por isso que Costello juntou os dois: não pela comédia vulgar de um homem e uma mulher com partes do corpo ausentes fazendo o possível para se encaixar, mas a fim de, uma vez removida a questão sexual, poderem ter uma aula de filosofia, deitados um nos braços do outro discursando sobre a beleza, o amor e a bondade?
E, de uma forma ou de outra, em meio a tudo isso - o constrangimento, o evitar, o filosofar, para não falar de uma tentativa dele de desatar o nó da gravata, que começou a sufocá-lo (por que está de gravata?) -, de alguma forma, desajeitados, mas não tão desajeitados quanto poderiam ser, envergonhados, mas não tão envergonhados a ponto de se paralisarem, eles conseguem deslizar para o ato físico ao qual se comprometeram vacilantes, um ato que embora não o ato de sexo conforme entendido no geral é assim mesmo um ato de sexo e que, apesar do membro truncado de um lado e do olho perdido do outro, se desenrola com alguma prontidão do começo para o meio e para o fim, quer dizer, em todas as suas partes naturais.

Não é belíssimo?

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Federico García Lorca e Mayte Martín


Já lhes falei da minha admiração por Federico Garcia Lorca e da alegria que experimentei o ano passado ao ganhar de uma amiga querida As Obras Completas desse poeta, em edição bilíngue. Pois bem, ontem um amigo querido mandou-me um arquivo em MP3 de uma canção que é um poema de Lorca. A cantante em questão, e que eu não conhecia, é Mayte Martín. Você pode visitar seu site e descobrir tudo about her. Trata-se de uma figura queridíssima da música flamenca nos últimos 30 anos e como poderão ouvir: cantante de interpretação intensa, emocionante na sua entrega ao prazeroso ofício de cantar. Ela inclusive altera alguns versos do poema, mas eu gostei até mesmo dessas alterações na sua interpretação.
Peço perdão por trazer esse vídeo do Youtube porque, definitivamente, eu não gosto dessas imagens com as quais algumas pessoas gostam de "ilustrar" gravações de canções. Sinceramente eu preferia ter disponibilizado aqui tão somente o arquivo em MP3. Será que isso é possível? Alguém saberia ensinar-me?
Sugiro que vocês ouçam a canção acompanhando tão somente o poema (não fiquem olhando para as imagens do vídeo! A não ser que queiram se divertir um pouco com a morte de cada metáfora de Lorca... rsrsrs)
Na verdade, estou sendo maldoso, desnecessariamente, a pessoa fofa que postou o vídeo no Youtube estava na viagem dela. É uma pessoa sensível, gosta da música, da cantora ou do poeta e isso é o que está valendo. Se eu quisesse "algo" melhor que eu mesmo produzisse e ponto final. rsrsrs O importante é que o vídeo e, principalmente, a canção está disponível nesse web querida que todos amamos, não é mesmo? Saibam que a tradução do poema é de autoria de William Agel de Mello, e que é o tradutor responsável pela minha edição da obra do poeta, publicada pela Martins Fontes.
Ainda uma última informação que, ao menos para mim, foi muito importante saber: Gacela (Gazel, em Português), segundo o Dicionário Houaiss,  é um gênero de poesia amorosa dos persas e dos árabes, estruturado em dísticos, com a mesma rima funcionando para os dois versos do primeiro dístico e para o segundo verso dos demais.

Enjoy it!

GACELA DEL AMOR IMPREVISTO

Nadie comprendía el perfume
de la oscura magnolia de tu vientre.
Nadie sabía que martirizabas
un colibrí de amor entre los dientes.


  Mil caballitos persas se dormían
en la plaza con luna de tu frente,
mientras que yo enlazaba cuatro noches
tu cintura, enemiga de la nieve.


  Entre yeso y jazmines, tu mirada
era un pálido ramo de simientes.
Yo busqué, para darte, por mi pecho
las letras de marfil que dicen siempre.


  siempre, siempre: jardín de mi agonía,
tu cuerpo fugitivo para siempre,
la sangre de tus venas en mi boca,
tu boca ya sin luz para mi muerte.

GAZEL DO AMOR IMPREVISTO

Ninguém compreendia o perfume
da escura magnólia de teu ventre.
Ninguém sabia que martirizavas
entre os dentes um colibri de amor.

  Mil cavalinhos persas dormiam
na praça com luar de tua fronte,
enquanto eu enlaçava quatro noites
tua cintura, inimiga da neve.

  Entre gesso e jasmins, o teu olhar
em um pálido ramo de sementes.
Eu procurei, para dar-te, em meu leito
as letras de marfim que dizem sempre,

  sempre, sempre: jardim de minha agonia,
teu corpo fugitivo para sempre,
o sangue de tuas veias em minha boca,
tua boca já sem luz para minha morte.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O (des)equilíbrio do mundo

No mundo há tanta coisa que acontece. E tudo sempre acontece à nossa revelia, of course. É bom acostumar-mo-nos, no sentido de que não devemos nos desesperar, mas, por outro lado, não podemos deixar de repudiar o que, definitivamente, não é alto astral.

Acho surreal, por exemplo, conhecer um pedido que, graças, enviaram-me by e-mail. Solicitaram-me que eu assinasse uma petição para fazer coro com todos os que estão horrorizados com uma projeto de lei na Uganda, que pretende levar à prisão perpétua ou ainda à pena de morte a todo aquele que fizer sexo com uma pessoa do mesmo sexo. Sim! É esse o teor da lei em questão e que, Deus nos livre, pode ser aprovada. Nem quis saber quem são os loucos que estão por trás desse horror, ou seja, que tipo exatamente de gente fundamentalista, extremista, com uma visão de mundo tão estreita que não respeita alguém que não seja heterossexual, e, simplesmente, queira banir do mundo tal pessoa. Você poderá encontrar mais informações nesse artigo da AfricanFiles. Eu assinei a petição organizada pelo pessoal da Avaaz.org.. Esse pessoal, que eu acho bem bacana, diz que se um número expressivo de pessoas, de vários países, manifestarem seu repúdio, o país em questão não poderá promover esse horror. Assine também, please! Além disso, há um gadget, no alto, à direita que leva à pagina para os donativos à causa. Qualquer quantia pode ajudar: se nós ajudarmos será possível lançar campanhas de rádio, anúncios de jornal e campanhas de outdoors para mostrar a milhões de ugandenses a verdade e sensibilizá-los para a necessidade de proteger os direitos humanos.

Por outro lado, há um outro tipo de coisa que também acontece, nesse mesmo mundo, e que é absolutamente alto astral. Ontem, eu estava assistindo à competição de patinação no gelo, nas Olimpíadas de Inverno - Vancouver 2010. Que coisa mais linda aqueles casais deslizando e fazendo coisas impossíveis para nós outros. ;-D
Os rapazes eram sempre esguios, altos, fortes e as moças delicadíssimas e, ainda assim, fortíssimas. Afinal é o que se espera dos atletas, que com todo um preparo, durante um longo treinamento, buscam em uma única apresentação, em determinado evento, os louros da vitória. Eu devo confessar que chorei toda vez que um dos parceiros, deslizando no gelo, caiu e a dupla perdeu os tais preciosos pontos. No entanto, minha emoção era ainda maior porque essa pessoa continuava a coreografia como se nada tivesse acontecido, e mesmo com um lindo sorriso no rosto.

Também chorei em saber do mal absoluto que preparam em Uganda. Mas sei que a força vital de todos os que hoje são vítimas, tão somente por causa de sua orientação sexual, irá imperar, e isso, simplesmente, porque tal como os saltos, círculos e giros em espiral dos bailarinos no gelo, essa força é muito mais bonita de se ver e, eu acredito, ela é de uma ordem superior.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Carnaval e infância


Hoje é terça-feira gorda de Carnaval. Esse ano não fui folião, embora eu goste de Carnaval. Gosto inclusive do universo das escolas de samba etc.. Contudo, quem nasce no Brasil acompanha o carnaval a vida toda e pode, um ano ou outro, abrir mão da folia e aproveitar os 4 dias de folga para um retiro. Eu estou mais para o clima de retiro do que para o de folia e foi o que fiz. Não fiquei sozinho, no entanto, fiquei com um amigo muito bacana e que tem uma conversa boa, daquelas que não cansam nunca e que são sempre proveitosas.

Esse meu amigo está vivendo a experiência excelente de ser tio de uma criança de apenas 3 anos. Ele contou-me vários epísódios de falas incríveis da garotinha e que são deliciosos de conhecer.

O tio perguntou se a criança estava sabendo que naquele dia era o aniversário da irmã dela. Ela disse que sim e, como tem apenas 3 anos e provavelmente não se lembrava dos dois últimos aniversários, saiu com essa questão:

- Tio, sabia que eu nunca faço aniversário?

Na festa de aniversário da irmã, todos estão dentro do salão de festas e o DJ está tocando alguma dessas manifestações contemporâneas do Funk Carioca e os adolescentes convidados estão dançando. O tio vê a sobrinha de 3 anos isolada, do lado de fora. Então, vai até ela:

- Vamos lá? Quer ir também?
Ela dá dois passos para trás e diz:
- Não, eu tenho medo da dança...
O tio olha para os que estão dançando lá dentro e conclui:
- Entendi... Até eu estou com medo!

Tocou o interfone, o tio foi atender. Ao voltar para a sala, a sobrinha lhe perguntou:
- Tio, quem está chegando?
- Josafá, o meu amigo.
- Josafá? Tio, qual é a cor do nome dele?

Em uma noite a criança, no seu quarto, está tendo um acesso de tosse, o Pai preocupado acende o abajur e diz:
- Nossa! Filhinha...
- É pai, eu tô zoada...

Adulto conversando ao telefone. A criança pergunta:
- Com quem você está falando?
- Com minha mãe.
- Posso falar com ela?
E ao pegar o telefone:
- Quem está falando?
Do outro lado:
- Célia.
- O que você está fazendo com seu nome?

Conversando com a tia de mais de 40 anos:

- Tia, eu não vou morrer.
- Você vai viver para sempre?
- É. Vou viver para sempre, linda e feliz. E você?
- Eu já não tenho essa certeza: de que vou ser sempre linda...

Acho que de tanto comentarmos acerca dessa criança e dessas suas falas sensacionais, acabamos por viver um momento semelhante, de quase um non sense infantil... rsrsrs Eu e meu amigo olhávamos uma revista na qual havia um ensaio fotográfico, com um modelo belíssimo. Eu olhando para o rosto do rapaz na foto, comentei:
- O ser humano é realmente um coisa linda, eu acho um aprimoramento mesmo da natureza. A cabeça em seu formato e no rosto essa combinação de dois olhos, nariz e boca. Não é mesmo?
- É. Não é como uma abóbora [e faz um gesto com a mão no ar, sugerindo a forma da abóbora], que é apenas um silhueta.

Morremos de rir. ;-D

Não foi um carnaval proveitoso esse meu, aprendendo assim tanta coisa?

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

José Hierro

Manter um blog, além de favorecer a experiência de autoria, propiciando o exercício da escrita, também nos faz estar em contato com o mundo. Pessoas do mundo inteiro podem visitar esse espaço e, assim sendo, há sempre a possibilidade da troca de ideias com aqueles que estão distantes no espaço, mas próximos no espírito. Assim tem sido com um amigo catalão que conheci por aqui. Certa feita, ele sugeriu-me que trocássemos livros de poesia, pois, assim sendo, ele iria conhecendo a poesia dos brasileiros e eu a poesia de Espanha. Pedi que fosse um livro em espanhol porque o catalão poderia ser um pouco mais difícil para mim, ao menos por ora. ;-p


Recebi o primeiro livro dessa troca. E descobri um assombro de poeta.


Trata-se de José Hierro e o seu Cuaderno de Nueva York. Segundo o texto da contracapa dessa edição, esse poeta ocupa um lugar fundamental na poesia espanhola da última metade do século XX. Ele publicou seu primeiro livro em 1947, Tierras sin nosotros e ganhou o prêmio Adonáis com a obra Alegria. Já esse Cuardeno de Nueva York é de 1998.

Outros títulos como Con las piedras, con el viento; Quinta del 42; Cuanto sé de mí, Libro de las alucinaciones e Agenda marcam uma trajetória impecável, permanentemente enriquecida e renovada, e que tem sido reconhecida com numerosos prêmios como o Nacional de la Crítica em duas ocasiões, o Príncipe de Asturias, o Nacional de las Letras Españolas e o Reina Sofía de Poesía.

Eu estou achando o poeta e seu Cuaderno emocionantes. Penso que essa sua poesia tangencia algo de mítico e de místico, ao mesmo tempo, o que não é muito comum, ou melhor, é apenas comum em toda poesia verdadeira. Assim sendo, penso que a poesia de Hierro toca em elementos que não podem ser compreendidos sem essa dimensão de transcendência do espírito humano. Eu considero que ele é daqueles poetas dos quais devemos decorar seus poemas e recitá-los sempre que houver oportunidade. Ou seja, tão somente quando estamos na companhia daqueles que se deliciam com essas profundezas da alma.

Todos os prêmios que Hierro recebeu são mais do que merecidos. Meu amigo catalão também merece um prêmio. Como não sou a rainha Sofia só posso dar-lhe como prêmio o livro prometido em troca e que já está a caminho de Benicarló, cruzando o Atlântico. Tenha paciência, Enric! ;-D

Para que vocês conheçam o poeta e o "clima" desse livro magnífico, eu trago aqui um dos poemas de que mais gostei. Perdoem-me a tradução, ou melhor, como não sou tradutor e nunca estudei espanhol, eu a chamaria de "versão brasileira" by Josafá Crisóstomo. rsrsrs

ESPEJO

                                                   En outro cielo, en outro reino extraño,
                                                          mis trabajos se vieron em mi cara.
                                                   LOPE DE VEGA


Esse desconocido, esse recién llegado
que habla solo - no sabe que lo escucho -
y que pregunta, no sé a quién, ¿por qué volviste?
Mientras borra com una blanca nube
los trabajos tatuados en su cara,
los zarpazos del tiempo,
y que outra vez pregunta ¿por qué volviste?
Esse, al que veo y al que escucho
desde el lado de acá del espejo,
¿dónde, com quién estará hablando?

ESPELHO

                                                Em outro céu, em outro reino estranho,
                                                meus sofrimentos surgiram em minha face.
                                                LOPE DE VEGA

Esse desconhecido, esse recém-chegado
que fala sozinho - não sabe que o escuto -
e que pergunta, não sei a quem: por que voltastes?
Enquanto apaga com uma nuvem branca
os sofrimentos tatuados em sua face,
as patadas do tempo,
outra vez pergunta: por que voltastes?
Esse, a que vejo e escuto
desde o lado de cá do espelho,
onde, com quem estará falando?

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Rima Fugita

Os últimos dois dias foram de muito trabalho. Um trabalho intenso e exigente. Imaginem: nada podia dar errado. Que medo! ;-p

Então, fiquei esses dois dias sem postar nesse blog querido, que eu amo! ;-D
Espero que as pessoas tenham aproveitado para assistir ao vídeo de Chimamamda Adichie.
Hoje, após o excesso, eu só queria estar no Tibet. rsrsrs
Como isso não foi possível, aproveitei para conhecer esse trabalho de Rima Fujita. Essa pessoa nascida em Tokyo e que vive em Nova York desde 1979 é bastante conhecida mundo afora e, além de ilustradora, mantém uma fundação que produz livros infantis e os doa para crianças órfãs e pobres do mundo inteiro.

Eu achei seu site bastante interessante. E claro, hoje, eu precisava ver algo assim, que nos lembrasse que há um mundo para muito além dos burocratas de plantão. Amém.



 
 
 
 











segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A aula de Chimamanda Adichie


Quando eu assisti a esse vídeo fiquei absolutamente encantado com essa pessoa. A dica veio de Luciana, minha amiga do blog Luciana na Cozinha.

Chimamanda Ngozi Adichie é uma pessoa inteira, verdadeira, lúcida, e uma prova de que a beleza é melhor apreciada quando ela demonstra que o ser é integral e que é possível e natural ser elegante.

Chimamanda Adichie é uma escritora nigeriana. Soube pela Wikipédia que ela nasceu em Abba, no estado de Anambra, mas cresceu na cidade universitária de Nsukka, no sudeste da Nigéria, onde se situa a Universidade da Nigéria. Seu pai era professor de Estatística na universidade, e sua mãe trabalhava como secretária no mesmo local. Quando completou dezenove anos mudou-se para os Estados Unidos da América. Depois de estudar na Universidade de Drexel, na Filadélfia, Chimamanda se transferiu para a Universidade de Connecticut. Fez estudos de escrita criativa na Universidade John Hopkins de Baltimore, e mestrado de estudos africanos na Universidade Yale.

Sim ela é uma professora universitária. E sua fala no TED nos faz desejar fazer um curso com essa mulher. Verifiquem vocês mesmos e vejam se não é essencial essa sua mensagem! \0/ Depois que eu ouvi, fiquei pensando nas muitas vezes em que eu também não incorri nos mesmos erros que ela aponta e para o qual devemos estar atentos nas nossas relações e na fruição das histórias que ouvimos sobre as pessoas e as diferentes culturas. A história nunca é uma só. Somos feitos por uma miríade delas, of course.

Será que seus romances já foram traduzidos para o Português? Devem ser fantásticos! Purple Hibiscus (Hibisco roxo), foi publicado em 2003. Half of a Yellow Sun (Meio sol amarelo), foi assim chamado em homenagem à bandeira da Biafra, e trata de antes e durante a guerra de Biafra. É premiado.

Eu acredito que todos os seres humanos do planeta terra precisam ouvir essa voz. \o/
São apenas 20 minutos de uma fala essencial. Enjoy it!

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O cinema que sidera

Ontem, fui ao cinema. Fiquei emocionado já no saguão, porque eu ia assistir a um filme, no cinema. Não vejo como substituir esse prazer da sala de cinema, do ritual de aguardar o início da sessão, de estar sentado em uma poltrona de uma sala na qual estão outras pessoas e que também, como eu, quiseram um encontro com O Cinema. Não há tv de qualquer espécie que substitua aquela imensa tela em branco e que se povoa de imagens projetadas. Ainda mais quando o filme a que vamos assistir é de um grande cineasta e sábio como Alain Resnais.
Eu já falei aqui de um outro filme dele a que também vi, no ano passado, e não poderia deixar de falar desse último.
Ervas Daninhas é um filme que convida à sideração, desde a cena inicial, quando a personagem vai comprar um par de sapatos pelo simples prazer de ser tocada nos pés. Então, na sequência acontece a cena do roubo, em que a bolsa amarela fica instantes no ar, e na qual a vítima não grita por socorro. Nós só veremos o rosto dessa personagem quando ele como que flutuar na banheira. Será ainda nessa banheira que se fará o balanço da situação vivida: ao comprar um sapato de que não precisava, roubaram-lhe a bolsa, é preciso ir à delegacia de polícia, mas tão somente no dia seguinte...
Alguém encontra a carteira, que fora abandonada após o roubo em um estacionamento, e, imediatamente, inicia uma fabulação a partir do que encontrara: fotografias em documentos, parcos dados, um endereço. Isso é suficiente para que ocorra o início de uma paixão, posto que o sujeito é um solitário. Estamos falando de um filme francês, portanto, aqui pode haver pessoas muito solitárias ainda que vivam com a família.
Importante: quando a comédia é francesa você pode rir e chorar, simultaneamente... Rimos porque a vida é cômica, choramos porque constatamos que é também trágico viver.
Esse filme ainda explora aquilo de que o cinema vive mais facilmente: encontros glamourosos e até um beijo apaixonado, à guisa de happy end. Sim, há muito glamour francês e ainda o que sempre achei o mais característico desse cinema de Resnais: a demonstração da beleza que existe em qualquer pessoa comum, assim como também da libido que se mantém forte mesmo aos quarenta, cinquenta anos, para essas mesmas pessoas comuns. Graças!
Aqui, o acaso promoveu um encontro, o que sempre sidera. E mais, haverá loucura, vida e morte.
Pareceu-me, no entanto, que o que mais importava dizer afinal é que a vida permanece, na sua eterna inocência, elaborando questões em torno do desejo. Como essa: Mamãe, quando eu for gato posso comer ração como eles?

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Amamos Chico Science


A primeira vez que eu ouvi o som de Chico Science e Nação Zumbi fiquei absolutamente siderado. Pensei: Então, existe vida na terra, existe artista de verdade e jovem e nascido no Brasil. O mundo está salvo!
Curti muito esse som dos únicos dois discos que ele gravou antes de morrer. E, então, ele morreu e eu chorei, como todos os fãs mundo afora.
Agora, 13 anos depois, o projeto Ocupação do Instituto Itaú Cultural, na Av. Paulista, apresenta uma exposição e eventos relacionados: é o Ocupação Chico Science, que começou ontem, 04 de fevereiro e vai até o dia 04 de abril.
Criou-se um ambiente para lembrar a vida e as experiências dessa alma criativa e que trouxe muita, muita vida para a música brasileira naquela década de 1990. Eles prometem tudo: a querida, capital do nordeste [essa é minha opinião], ou seja, a Recife das décadas de 1980 e 1990, com a sua arte urbana, o mangue, o hip hop e o maracatu e também as festas na Soparia, o computador e toda a inspiração de Chico e seus amigos, que eram chamados de mangueboys.
As exposições no Itaú Cultural são sempre interessantes porque há uma fruição e interação com o público visitante.


A curadoria promete que a exposição faz referência à cena, mas também mostra toda a trajetória de Chico Science: com objetos pessoais; imagens de arquivo; cartazes de shows e depoimentos de familiares, amigos e parceiros musicais.
Além disso, a todos os que não estão ou estarão em São Paulo, há um hotsite que irá oferecer a oportunidade de everybody conferir a homenagem. É imperdível e já sinto a emoção, sim, eu já estou emocionado.
Além disso, todos os eventos possuem entrada franca. Oba! \o/\o/\o/




O bico do beija-flor, beija a flor,
beija a flor.
E toda fauna flora grita de amor.
Quem segura o porta-estandarte
tem arte, tem arte.
E aqui passa com raça,
eletrônico,
o maracatu atômico.

Manamaué auéa aê
Manamaué auéa aê
Manamaué auéa aé
Manamauê auêa aé

Atrás do arranha-céu tem
o céu, tem o céu.
E depois tem outro céu
sem estrelas.
Em cima do guarda-chuva tem
a chuva, tem a chuva.
Que tem gotas tão lindas que
até dá vontade de comê-las.

Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê

No meio da couve-flor tem
a flor, tem a flor
Que além de ser uma flor
tem sabor
Dentro do porta-luvas tem a luva,
tem a luva
Que alguém de unhas negras
e tão afiadas
esqueceu de por

Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê

No fundo do pára-raio tem o raio,
tem o raio.
Que caiu da nuvem negra
do temporal.
Todo quadro-negro é todo negro,
é todo negro.
Eu escrevo seu nome nele
só pra demonstrar
o meu apego.

Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê

O bico do beijar flor, beija a flor,
beijar a flor.
E toda fauna flora gata de amor.
Quem segura o porta estandarte
tem arte, tem arte.
E aqui passa com raça,
eletrônico,
o maracatu atômico.

Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê

Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê
Manamauê auéa aê...

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

São Paulo é também encantamento


Ontem, não consegui voltar para casa. Após uma tempestade monstruosa como só poderia ser descrita na obra de Shakespeare tivemos uma pane no transporte público dessa linda e alagada cidade. Assim, fui dormir na casa de uma amiga que mora perto da Paulista. Eu a encontrei por um acaso perdida no centro e ambos tivemos que passar pelo viaduto do Chá, subir a Xavier de Toledo e a Rua Augusta, andando, até chegar a sua casa. Um tour. Ainda bem que a brisa noturna havia dissipado as nuvens.
Hoje, na hora do almoço, outro encontro feliz: uma amiga que trabalha em outro andar do edifício em que eu também trabalho saía para fumar na rua [não podemos mais fumar dentro de nenhum lugar!]. Eu disse que pretendia comer um lanchinho em uma mercearia tradicional da Praça da Sé, porque ali eu poderia comer um doce português delicioso: o Gracinha de Cascais. Quem nunca comeu deveria experimentar.
 ;-D

Então, ela sugeriu-me que fossemos a uma casa tradicional aqui do centro a qual, que vergonha!, eu não conhecia.
Trata-se da Casa Godinho, um lugar que foi inaugurado em 1888 na mesma
praça da Sé, mas que em 1924 mudou-se para a Rua Libero Badaró e ocupa o térreo do primeiro edifício alto de São Paulo. Ele é conhecido como o avô dos arranha-céus da cidade. Inaugurado em 1924, o Edifício Sampaio Moreira só perdeu a majestade dos 13 andares que possui, alguns poucos anos depois, para o famoso Martinelli, que foi um assombro na São Paulo daquela época, com os seus 30 andares.



O lugar é puro charme. As prateleiras são todas originais, em Imbuia, os produtos todos de primeira qualidade, muitos importados de diferentes regiões do planeta. E os salgados e doces são, além de muito saborosos, bastante baratos. Comi uma generosa empada de bacalhau e uma imensa taça de mousse de chocolate. Paguei tão somente R$7,00! Para mim, só o fato de estar dentro daquele ambiente já era uma satisfação. O bom atendimento é também uma característica da casa: um senhor de cabelos brancos, muito simpático, vendo minha indecisão diante da vitrine de guloseimas sorriu e quanto finalmente me decidi ele sentenciou: Quem procura acha... (ainda todo sorrisos). Senti-me feliz porque eu que já estivera desde o dia anterior em boa companhia só atraia outras boas companhias nesse dia seguinte e ainda mesmo naquele lugar. Era como se eu tivera atravessado uma porta do tempo e caído direto num mundo de gentilezas e educação, de há 100 anos.

Fiquei pensando que devo estar sendo abençoado pelos deuses por estar tão protegido e querido num mundo que só desmorona por todos os lados a minha volta. Embora eu não tenha certeza ou não saiba ao certo se mereço tanto, fico todo agradecido e desejando que assim seja por todos os séculos dos séculos. Quão bom seria!

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Exposição O Brasil de John Graz


Hoje às 13h, em São Paulo, não chovia. Pelo contrário, o sol de verão reinava por completo e saí à rua bastante contente tão somente por esse estio. Dirigi-me à Caixa Cultural da Praça da Sé. Encontrei-me, então, dentro de um imenso salão repleto de quadros na parede. Quando vi aqueles desenhos, que variavam as técnicas do grafite e guache no papel, concordei com os organizadores dessa exposição que nos falam acerca da elegância do trabalho artístico de John Louis Graz. Esse suíço, radicado no Brasil desde 1920, sorveu as paisagens, as formas e a gente brasileira criando um universo brasilianista, que, penso, nunca fora visto antes. Ele é popular, colorido, tem uma relação de observador da natureza muito refinada, porque é simples e muito, muito poético.

Eu recomendo a visita a essa exposição que também tem imagens dos móveis que ele criou, de decorações que planejou para diferentes e importantes casas paulistanas e ainda umas esculturas que são como jóias, assim como jóias propriamente e que são como esculturas...
Não é à toa que ele era chamado de artista total por unir arte, arquitetura e designer na linguagem toda própria que criou.
Recomendo, para quem não pode vir a São Paulo, conhecer o site do Instituto John Graz.
Esse é mais um artista que eu fiquei encantado em conhecer. ;-D
Clique na imagem abaixo para obter outras informações.


terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Victor Hugo

Eu preciso agradecer ao Alessandro do blog Livros & Afins porque ele sempre tem informações preciosíssimas sobre o mundo dos livros. Hoje, ele exibiu uma imagem de Onde Batman passa os poucos momentos em que não há crimes. Então, vejo no rodapé dessa postagem um link para outro post em que ele nos conta que o magnífico Coringa foi inspirado em um livro de Victor Hugo chamado O homem que ri.
De Victor Hugo eu só lera O Corcunda de Notre Dame, [uma amiga disse-me que o Paulo Francis (um jornalista brasileiro antiquíssimo) chamava-o "O Cordame de Notre Cunda". rsrsrs]. No entanto, o li quando eu ainda era um adolescente. Pois bem, imediatamente fiquei louco de vontade de ler Victor Hugo nesse momento da minha vida e comecei a procurar pela web o tal O homem que ri. Encontrei, em um site chamado Eflúvio Magnético, a reprodução de uns poucos capítulos do livro e comecei-lhes a leitura. Achei incrível, aterrador e emocionante. Mas isso eu já sabia que seria. Eu lembro-me perfeitamente da forte impressão que me deixou o Corcunda...
Só para que vocês saibam o contexto do trecho que li, até o ponto da passagem que trouxe para cá: ali temos uma criança que provavelmente fora abandonada em uma ilha deserta, um menino náugrafo e que encontra o cadáver de um enforcado dependurado em um precipício. Após a descrição terrível de um ataque de corvos ao cadáver, teremos a passagem a seguir e que eu reproduzo aqui porque eu achei que fala do ser criança de um modo muito, muito peculiar:

Já não corria, andava. Dizer que o encontro com um morto o fizera homem, seria limitar a impressão múltipla e confusa que experimentava. Havia nesta impressão muito mais e muito menos. Aquela forca, sobretudo turva no rudimento de compreensão que era o seu pensamento, permanecia para ele uma aparição. Como, porém, um terror dominado equivale a um robustecimento, sentiu-se mais forte. Se tivesse idade para se sondar, teria descoberto em si mil outros princípios de meditação, mas a reflexão das crianças é informe, e quanto muito sentem o travo amargo desta coisa obscura para elas a que o homem mais tarde chama de indignação. Acrescentemos que a criança tem o dom de aceitar muito rapidamente o termo de uma sensação. Os contornos longínquos e fugitivos, que constituem a amplitude das coisas dolorosas, escapam-lhes. A criança é resguardada pelo seu limite, que é a fraqueza, das comoções demasiado complexas. Vê o facto, e pouco mais ao lado dele. A dificuldade de achar suficientes as ideias parciais, não existe para a criança. O processo da vida só se instrui mais tarde, quando chega a experiência com os seus actos. É então que se dá o confronto dos grupos de factos encontrados, no decorrer do tempo; a inteligência, suficientemente informada e desenvolvida, compara; as recordações da infância reaparecem sob as paixões, como o palimpsesto por baixo dos borrões; estas recordações são pontos de apoio para a lógica; e o que era visão no cérebro da criança torna-se silogismo no cérebro do homem. A experiência, afinal, é diversa, e dá bom ou mau resultado, segundo as disposições naturais dos homens. Os bons amadurecem; os maus apodrecem.
O pequeno transpusera um quarto de légua a correr e outro quarto de légua a andar. De repente, sentiu que o estômago o importunava. Então assaltou-o um pensamento, que lhe eclipsou num instante a hedionda aparição da colina: pensou em comer. Há no Homem felizmente um animal; é ele que o chama à realidade.
Comer, porém, o quê? Comer onde? Comer de que modo?
Apalpou as algibeiras, porém, maquinalmente, porque bem sabia que as tinha vazias.
Depois apressou o passo. Não sabia para onde ia, mas apressou o passo para o albergue possível.
Esta fé numa pousada faz parte das raízes da providência no homem.
Crer numa pousada, é crer em Deus.

Preciso comprar esse livro! Agora, quero ler o livro inteiro.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Por que não sou infeliz?



Ler é uma experiência que sempre nos proporciona um deleite completamente sui generis: o de sentir a alma elevada. É sempre um aprendizado e eu estou desconfiado que tal experiência poderá nos levar a fazer a  mesma pergunta do poeta Hans Magnus Enzensberger: Por que não sou infeliz?

Eu, particularmente, não estou infeliz hoje, porque li esse soneto
da minha poeta preferida.
Querida Florbela Espanca! \o/

RÚSTICA


Ser a moça mais linda do povoado,
Pisar, sempre contente, o mesmo trilho,
Ver descer sobre o ninho aconchegado
A benção do Senhor em cada filho.

Um vestido de chita bem lavado,
Cheirando a alfazema e a tomilho...
Com o luar matar a sede ao gado,
Dar às pombas o sol num grão de milho...

Ser pura como a água da cisterna,
Ter confiança numa vida eterna
Quando descer à «terra da verdade»...

Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!
Dou por elas meu trono de Princesa,
E todos os meus Reinos de Ansiedade.

FLORBELA ESPANCA
Charneca em Flor
(1930)