segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

J.M. Coetzee e seu Homem lento

Enquanto vivo, leio. Há muitas atividades prazerosas nessa vida. As que dizem respeito ao prazer físico são imediatamente identificáveis: comer, dormir etc. Nesse etc. cabe uma pletora de atividades, não é mesmo? Mas, eu tenho para mim, as atividades intelectuais são ainda mais prazerosas. O físico participa dessas últimas como instrumento. Afinal, eu preciso sentir-me bem, fisicamente, para ler, por exemplo. Não devo estar com sono, ou com fome, ou cansado. No entanto, ontem eu estava em luta noturna com meu sono. E isso porque eu estava lendo Homem lento, de J.M.Coetzee e já era mais de meia-noite. Mas como eu poderia abandonar Paul Rayment e Marianna justamente naquela hora!? São as personagens desse livro.




Coetzee é prêmio Nobel e, sim, eu não sabia disso e nem o conhecia, uma vez que nunca lera nada desse premiadíssimo escritor sul-africano e que, atualmente, mora na Australia. A história do romance, inclusive, se passa nesse país. No início do livro, temos a cena do atropelamento de Paul Rayment, um homem com mais de sessenta anos e que, por conta disso (ter sido atropelado e ter mais de sessenta nos), tem uma perna amputada. Solitário, passa a viver essa nova experiência, com todas as agruras de quem é obrigado a mudar o modo de viver, a partir de uma fatalidade. Qualquer outra pessoa criando uma história, tendo como princípio esse tipo de situação, poderia pecar por excesso: de sentimentalismo, ou de pieguice e sabe-se lá do que mais! Nesse caso, não. Coetzee consegue prender o leitor o tempo todo na teia de reflexões e experiências cotidianas da personagem. O melhor de tudo é o foco narrativo do texto, pois temos um narrador em 3a pessoa, que conta a história, mas há momentos que já não sabemos mais quem está falando: ocorre as tais focalizações, em seus desvios. Então, ora é a personagem quem está falando em meio à fala do narrador, ora quem fala é o próprio narrador como se fosse a personagem, ou ainda por ela, ou seja, contar uma história torna-se uma variada combinação de enunciadores na teia narrativa.

O tal trecho que não me deixava fechar os olhos para o prazer físico do sono era quando Rayment com os olhos vendados (por exigência da parceira) se encontra com Marianna, que, por sua vez, é deficiente visual, para a primeira experiência sexual, após o acidente. Conheçam esse excerto e vejam se eu não tenho razão de permanecer acordado e lendo Coetzee:

Quanto tempo faz que ela perdeu a visão? Será decente perguntar? E será decente passar para a próxima pergunta: se fez amor desde que aconteceu?Foi a experiência que ensinou a ela que seus olhos devastados aniquilarão o desejo de um homem?
Eros. Por que a visão do belo chama à vida? Por que o espetáculo do horrendo estrangula o desejo? Será que a relação com o belo nos eleva, nos torna pessoas melhores, ou será abraçando os doentes, os mutilados, os repulsivos que melhoramos a nós mesmos? Que perguntas! Será por isso que Costello juntou os dois: não pela comédia vulgar de um homem e uma mulher com partes do corpo ausentes fazendo o possível para se encaixar, mas a fim de, uma vez removida a questão sexual, poderem ter uma aula de filosofia, deitados um nos braços do outro discursando sobre a beleza, o amor e a bondade?
E, de uma forma ou de outra, em meio a tudo isso - o constrangimento, o evitar, o filosofar, para não falar de uma tentativa dele de desatar o nó da gravata, que começou a sufocá-lo (por que está de gravata?) -, de alguma forma, desajeitados, mas não tão desajeitados quanto poderiam ser, envergonhados, mas não tão envergonhados a ponto de se paralisarem, eles conseguem deslizar para o ato físico ao qual se comprometeram vacilantes, um ato que embora não o ato de sexo conforme entendido no geral é assim mesmo um ato de sexo e que, apesar do membro truncado de um lado e do olho perdido do outro, se desenrola com alguma prontidão do começo para o meio e para o fim, quer dizer, em todas as suas partes naturais.

Não é belíssimo?

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