sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Lhe doía a vida, indevida em um só indivíduo


Esse ano foi o ano em que descobri a existência da obra do escritor moçambicano Mia Couto. Li Antes de nascer o mundo e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Eu diria que se trata de uma obra sofrida, como sofrida foi a saga do povo daquele país africano na terrível guerra civil que viveu. Mas obra finíssima, de uma prosa poética como poucas vezes encontramos na língua portuguesa. O título desse post é citação de um trecho do romance que ora leio: Terra Sonâmbula. Esse romance é delicado porque acompanhamos um par de personagens durante toda a história, mas essa última se abre em muitas outras quando o menino, que acompanha o adulto, começa a ler um caderno encontrado enquanto fogem da guerra. Sim, é uma história de refugiados. Entre as tantas histórias que acompanhamos lhes dedico, nessa sexta-feira, essa pequena narrativa, narrada pela personagem adulta ao menino, quando encontram um homem, Nhamataca, e que cava um rio. É a história do pai de Nhamataca. É de chorar de emoção!

Tuahir recorda a estoriazinha do pai do fazedor de rios. O homem vivia só, se lamentando: antes mal acompanhado! Habitava na esteira de um rio largo, tão largo que deitava a pequeno qualquer tamanho da outra margem. Lhe doía a vida, indevida em um só indivíduo. Não haveria outra humanidade neste extenso mundo? Até que um dia, do outro lado das águas, lhe pareceu chegar uma voz. Havia um cacimbo cheio, era a estação das brumas. O velho se ergueu e espreitou a lonjura. Lá estava: do outro lado, o esbatente vulto de um gentículo. Deste lado, o pai gritou também. Não entendia rabisco que o outro dizia. Mas ripostava, com ânsia, antes que a miragem, desiludida, desaparecesse. Durante dias, se repetiu a troca de berros, até o arrebatamento das vozes se converterem uma em outra, sem nenhuma palavra se ter tornado entendível. O velho todo dia suspirava pelo momento de gritar. Um dia, contudo, o outro se demorou. Um estremecimento lhe arrepiou a tristeza. Ele já sofria de afeição demasiada pelo desconhecido, fosse a saudade de um irmão ainda por nascer. Manobrou, então, um pressentimento: e se, nos anteriores dias, o outro lhe tivesse tentado avisar de qualquer tragédia que estivesse por acontecer? Ou se o outro estivesse doente, necessitando de um braço amigo?
Decidiu então improvisar uma jangada, depressou-se na sua construção. E se lançou nas vagas, transversando a corrente. Em meio da jornada reparou como havia sido grande sua ousadia. E as ondas cresceram, grandes que ele nunca vira. A barcaça não resistia, o caudal do rio a ver com quantos paus se desfaz uma canoa. A água já embarcara, aos bocejos, na almadia. O pai de Nhamataca afundava, sem remédio. Nesse intante, porém, ele viu que um outro barquito avançava em sua direção. Olhou: era o vulto da outra margem que acorria em rumo avesso, direito a o salvar. Braços fortes o puxaram e ele se anichou, encharquilhado na outra embarcação. Foi então que, desfeitas bruma e lonjura, descobriu que o personagem do outro lado era uma mulher, dona de incendiada beleza. Tudo o resto se passou em silêncio como se perto já não se escutassem. O amor que trocaram é assunto para duas vidas inteiras, abandonadas para sempre num barquito sem rumo.
- Nasci num barco, sou filho das águas, sorri Nhamataca a fechar a estória.
Também descobri que foi feito um filme, baseado no romance, com roteiro do próprio Mia Couto e da diretora do filme, estreante a essa altura, Teresa Prata. É uma co-produção de Moçambique e Portugal e foi lançado em 2000, tendo no elenco: Tânia Adelino, Candido Andrade, Valdemar António, entre outros. Será que é tão bom quanto o livro? A ver. A imagem acima é uma cena do filme.

3 comentários:

  1. O nomadismo que há em todos nós se condoi e se alimenta (às vezes morbidamente...) dessas andanças de tantos pelo planeta, destituídos daquilo que muitos de nós temos tanto! E nem sei se "ter" é exatamente uma vantagem... talvez seja só um conforto medíocre que nos impede (poupa?) de sair em busca. Ai, ai. Como pode ser bela e tristíssima esta vida!

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  2. passando pra uma visitinha...
    ótimos posts, como sempre!

    bjs

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  3. Lu,
    O livro é belíssimo mesmo. Esse nomadismo no livro acaba por ser metáfora de uma condição humana, mesmo.

    Kika,
    Sinto tanto sua falta! Sua interlocução é sempre tão rica.
    Apareça para uma visita mais demorada, ok?
    kisses. ;D

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