quinta-feira, 12 de março de 2009

A Caixa Preta de Amós Oz


Estou lendo o romance A Caixa Preta, de Amós Oz. Já me aconteceu de, ao ler um romance, e também tem acontecido com esse, imaginá-lo como se fora um filme.
Contudo, trata-se de um "filme" em que o leitor o constrói, preenchendo as lacunas do descrito no livro, portanto, criando, livremente e a partir da base escrita, as imagens dos cenários, cenas e atuações dos atores/personagens. Penso que tal filme será, necessariamente, sempre mais rico, ao menos para esse leitor em particular, do que um filme que porventura algum diretor de cinema possa de fato vir a fazer baseado naquele romance, ainda que existam diretores talentosíssimos e que sempre apresentarão sua própria e, por que não?, apropriada leitura.

Acredito mesmo que alguns romances quase que solicitam esse exercício de imaginação visual, ou seja, a interação com o suposto filme e que ali foi também engendrado.
A Caixa Preta é exatamente assim. Para quem ainda não leu o romance, saiba que nele seu autor se vale da clássica forma do romance epistolar.
Vejam só esta descrição de si mesmo, em uma "cena" construída pela personagem Alex Guideon, professor e escritor mundialmente famoso, ex-marido de Ilana Sommo, em uma das cartas-respostas que lhe escreve. Li esse parágrafo como se também fossem as indicações de cena de um diretor para o ator que a interpretasse, no cinema, no papel de Alex Guideon. Vejam lá:

Tente visualizar este homem, se conseguir - mais magro do que você se recorda e com muito menos cabelo, calças de veludo cotelê azul e uma malha vermelha de cashmere. Mesmo que basicamente, como você diz, ele esteja em preto-e-branco. Parado à janela, a testa colada ao vidro. Os olhos nos quais você localiza "uma maldade glacial" examinam o mundo exterior onde a luz está apagando. As mãos no bolsos. Cerradas. De tempos em tempos, ele dá de ombros e resmunga à moda inglesa. Uma espécie de frio perpassa seus ossos. Ele estremece, tira as mãos dos bolsos e abraça os ombros. É o abraço daqueles que não têm ninguém. E mesmo assim, certo elemento animal confere à sua postura silenciosa junto à janela algumas características de tensão interior - como se estivesse totalmente alerta para voltar-se como um raio e antecipar-se aos atacantes.

Conversando com uma amiga que já leu o livro, comentei que o mais comovente e significativo é que o leitor vai conhecendo a história por meio das cartas e que são todas muito contundentes, há um conflito abissal entre os personagens, e, no entanto, você não pode tender para o lado de nenhum dos envolvidos: ninguém é culpado, mas também ninguém é inocente. Aliás, é isso o que mais interessa em histórias bem contadas no mundo literário ou cinematográfico: o leitmotiv é revelar que o movimento dialético da culpa e inocência é intrínseco à experiência do viver a vida humana.

Não vou resistir e vou trazer também um pouco da palavra da personagem feminina. Ilana responde à carta de Alec (é assim que ela chama o ex-marido Alex Guideon):

Há felicidade no mundo, Alec, e o sofrimento não é o seu oposto, mas a saída estreita através da qual passamos encurvados, arrastando-nos entre urtigas, à procura da clareira na floresta silenciosa banhada pelo luar de prata.
E, ao fazer uma re-citação de si mesma, em outra carta, teremos uma variação sobre o mesmo tema:
Há felicidade no mundo, Alec, e o sofrimento não é o contrário dela, é o atalho espinhoso ao longo do qual andaremos rastejando até a clareira daquela floresta, sombreada pelo luar claro e prateado, que nos chama e espera por nós. Não se esqueça. Ilana

Um comentário:

  1. Parabéns, Josafá. Esse foi o post teu de que mais gostei até o momento. Concordo com você: as grandes obras de ficção são as que contemplam a dialética da vida não ficcional, pois seus personagens ganham complexidade, tornando-se, de fato, humanos, embora muitas vezes inventados.
    Abraço.

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