sexta-feira, 18 de junho de 2010

Leia Goethe.

Estou lendo Goethe. Estou até mesmo tomado de emoção por conta dessa experiência nova. Tal iniciativa se deve a uma disposição que me ocorreu, por conta de que eu, somente agora, compreendo que não é preciso saber alemão para ler o autor. O que precisamos é confiar que o exercício de tradução daqueles que se empenharam em verter uma obra para outro idioma é um exercício de entrega que por si só merece reconhecimento.
Todo grande autor e, por conseguinte, toda grande obra, como é caso do Fausto de Goethe, são aureolados por uma mística da perfeição que se por um lado colabora para a sua boa propagação, por outro enevoa o autor e a obra, distanciando-os dos comuns mortais.
Eu cai muitas vezes nessa armadilha e deixei de ler alguns livros, pensando que não seriam para mim. Mas como não? Sou alfabetizado, tenho uma formação até que não de todo desprezível, eu mereço ler Proust, Joyce, Goethe. E ler a esses autores de peito aberto. Meu conhecimento de Inglês, embora nem tão desprezível, não me permite ler o Ulisses no original, ao menos não sem grandes dificuldades. E Proust e Goethe, no original, também não posso. Então, vamos contar com a ajuda dos bravos tradutores para o acesso a essa experiência de vida.

Sim, a leitura permite uma experiência de vida sem igual, que não é aquela de todo dia, mas aquela que nos alimenta para viver melhor o dia a dia.

No caso do Fausto, devo confessar que fiquei ressabiado com a tradução que tenho em mãos, uma edição impressa. Embora eu não tenha nenhuma informação sobre sua origem, sobre quem é esse corajoso senhor que se permitiu traduzir um clássico. Assim sendo, fui procurar outro texto. Descobri uma tradução de domínio público e que estou achando excelente. Trata-se de um tradutor português do século XIX:  António Feliciano de Castilho (1800-1875).
Agora leio as duas. São tão distintas que me parece até que leio dois livros, escrito mesmo por dois autores! (Espero que por 3, ou seja, que Goethe também esteja aí implicado) Vou reproduzir o comecinho do livro para que vocês percebam o tipo de aventura a que estou me entregando. Como entendo a leitura como algo muito muito pessoal, compreendo que essa distinção imensa das variadas versões está valendo.
 
A verdade é que Goethe e seu Fausto são tão humanos que cada um dos seus leitores irá se reconhecer do lugar em que se encontra na múltipla e eterna variação da existência. Simples assim. ;-D

QUADRO I
[Prólogo no Céu]


O Empíreo. Ao meio o Senhor, no trono. À roda a corte celestial, com as suas jerarquias: anjos, arcanjos, querubins, serafins, tronos, potestades, dominações, virtudes, e coros.


CENA ÚNICA

O SENHOR, a sua corte, logo depois MEFISTÓFELES
(Acercam-se do trono os três Arcanjos)


RAFAEL (cantando)

No coro sideral o sol vai prosseguindo,
qual na origem lho hás dado, o curso harmonioso.
Tonitruante baixo em teu concerto infindo,
só mandando-lho tu, Senhor, terá repouso.
Sua luz dobra a nossa, enchendo-nos de espanto
não podermos sondar-lhe a portentosa essência.
Como o fora a princípio, ó sacra Omnipotência,
teu sol é hoje ainda enigma, assombro, encanto.

GABRIEL (cantando)

E da terráquea esfera a máquina esplendente
segue em seu torvelino, eterno, arrebatado;
por que ora à luz dos céus florido Éden se ostente,
ora descanse envolta em negro véu bordado.
O mar espuma, troa, investe as brutas fragas,
que o repulsam desfeito, em nunca finda guerra.
Mas na perpétua luta, as rochas como as vagas
sempre juntas, sem termo, o volutear da terra.

MIGUEL (cantando)

Dos solos contra o mar, do oceano aos continentes,
jogam-se os temporais com ímpeto profundo;
zona de assolasses e criações potentes,
que desfaz e refaz perpetuamente o mundo.
Ígnea precede a morte ao trovejante horror.
Mas nós, os cortesãos da tua imensidade,
gozamos luz e paz por toda a eternidade.
Bendito sejas tu, Senhor! Senhor! Senhor!

OS TRÊS (juntos)

As tuas criações enchem os céus de espanto;
nem o arcanjo lhes sonda a portentosa essência.
Como o fora a princípio, ó sacra Omnipotência,
teu mundo é hoje ainda enigma, assombro, encanto.

MEFISTÓFELES (cortejando ao Padre Eterno)

Inda enfim cá tornei. Visto quereres
saber por mim o que lá vai no mundo,
pronto; que antigamente (inda me lembra)
gostavas de me ouvir. É só por isso
que me tornas a ver entre esta súcia.
Tem paciência! Eu, retóricas sublimes,
é coisa que não gasto; e mesmo escuso
deste augusto congresso expor-me às vaias.
Co’o meu patos tu próprio te ririas,
a não teres perdido esse costume.
Sei cá palavrear de sois! de mundos!
Toda a minha sabença é perder homens.
O deusito da terra está na mesma:
parvo como ab initio. Melhor fora
(digo eu cá) não lhe teres infundido
o raio dessa luz, que lá se chama
Razão, e que na prática só presta
para o tornar mais bruto que os mais brutos.
Com licença da Tua Majestade,
o que ele me parece, é gafanhoto
pernilongo, com mescla de cigarra,
já voador, já saltão, já num relvado
co’a sua solfa velha a estrugir tudo.
E vá lá, se da erva não saísse
inda era meio mal; mas tem o sestro
de se andar sempre à cata de imundícies.


O SENHOR

Parece-se contigo. O teu regalo
é esse: acusar sempre. Então no mundo
nada há bom?

Por essa fala até mesmo singela de Deus, segundo Goethe, já é possível perceber que quem se permite o tipo de negógio no qual Fausto se meteu é porque compartilha com Mefistófeles desse orgulho e soberba imensos, e isso inevitavelmente  tem como consequência nutrir esse desgosto pela vida. Penso que o que nos falta, quando estamos nessa vib, e nisso concordo com Goethe e com Deus, é ver o que no mundo há de bom. ;-D

2 comentários:

  1. Tu locura es conmovedora Jo...

    Mi tristeza incalculable...(lo juro!)

    Saramago siempre estará en nuestro corazón y en nuestra intelectualidad (como una semilla acechante y dispuesta a crecer).
    Hoy Goethe (lo siento) me la suda ! (Tomorrow he come back at her status, at the great, at the celestial pop soda of names without doubt, without shadow...)
    Hoy una pena y un desgarrado "Viva Saramago" y, como gritó Joaquin Sabina, un visceral "Muera la muerte!".

    Que sepan que seremos inamovibles, como en la ceguera lo es la oscuridad, como el fuego en el fondo insondable del volcán y en la pobreza, palpitante, la simiente de la revolución.

    Un abrazo, grande, amigo.

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  2. Querido,

    Também sinto profundamente a perda do grande escritor português! Que dívida imensa a humanidade tem para com esse criador de tão grandes livros: O ensaio sobre a cegueira, O ano da morte de Ricardo Reis, O evangelho segundo Jesus Cristo (o melhor de todos!)...
    Uma amiga minha disse que ele foi para o ceú dos escritores. Eu não sei se é tão simples assim. Mas com certeza seu espírito irá permanecer entre nós por tantos escritos magníficos e amorosos e por seu testemunho no combate a tantas injustiças desse mundo. Um combate visceral, de ampla domínio e voz.

    "Muera la muerte!" Además Eso es una locura commovedora, por supuesto! ;-D

    Que saudades imensas de ti. Em breve lhe enviarei os mimos que estou juntando para ti e os seus. Penso em vocês todos os dias. Acredite!

    Que a compaixão suavize a amargura!

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