terça-feira, 26 de maio de 2009

Johnny Alf e o pathos bossanovista


[Esse post é de autoria do meu amigo blogueiro Felipe. Ele é o responsável pelo Blog Jogo de Classe e tem aqui um espaço para falar da sua admiração por Johnny Alf e contar-nos a experiência única que ele viveu em um show recente do cantor e que reuniu toda essa turma boa da foto-montagem (by Ronaldo Santanielli). Carrilho escreve super bem, isso vocês vão ver :D Felipe Carrilho é historiador.]

No recente domingo (24/05) fui à apresentação de Johnny Alf, no Sesc Pinheiros. O intuito do evento era homenagear o músico que acabara de completar 80 anos e, para isso, contava também com a participação de Alaíde Costa e Emílio Santiago.
Negro, filho de uma lavadeira e de um cabo do exército que morreu na Revolução de 1932, Johnny Alf (Alfredo José da Silva) nasceu em 19 de maio de 1929 e foi criado pela família para a qual a sua mãe trabalhava, no Rio de Janeiro. Aos nove anos de idade começou a aprender piano clássico e aos quatorze formou o seu primeiro conjunto, com amigos do bairro de Vila Isabel.
Em 1954, depois de perambular por vários estabelecimentos da noite carioca, Alf foi o pianista da boate do hotel Plaza, na avenida Princesa Isabel, em Copacabana. Lá, tocava suas próprias canções, como "Rapaz de bem", "Céu e mar", "O que é amar", entre outras. Críticos musicais, posteriormente, diriam que tais composições anteciparam muitas das tendências características da Bossa Nova. A leveza, o otimismo e o culto aos prodígios naturais da paisagem carioca comporiam a temática de sua poesia e estariam, pode-se dizer, entre os elementos constitutivos de uma espécie de ethos bossanovista, no sentido antropológico do termo.
Entre o seleto público que o acompanhava nas madrugadas do bar do Plaza, os mais assíduos eram Tom Jobim, João Donato, João Gilberto, Lúcio Alves, Dick Farney, Dolores Duran, Paulo Moura, Baden Powell, Luiz Eça, Carlos Lyra etc. Décadas depois, o escritor Ruy Castro diria acertadamente: "Com tantos talentos jovens reunidos, quase todas as ousadias rítmicas e harmônicas que produziram a Bossa Nova estiveram em laboratório naquelas madrugadas...".
Entretanto, em 1955, Johnny Alf aceitou uma proposta para cantar na noite paulistana e partiu, quatro anos antes do despontar da nova música, com o lançamento de "Chega de Saudade", do magnífico João Gilberto. Com o estouro da Bossa Nova, muitos de seus antigos fans adquiriram notoriedade, na esteira da batida do violão de João Gilberto. O velho mestre ficou, então, esquecido em São Paulo e, com exceção de poucos como Tom Jobim, que o apelidara de Genialf, quase não houve quem fizesse justiça às contribuições do músico precursor.
Mas, voltemos ao espetáculo em questão. Foi uma noite emocionante, em que testemunhamos um Johnny Alf ainda marcado pela árdua batalha que acabara de travar contra um câncer de próstata, mas nem por isso menos genial. A maior parte de suas canções foi interpretada brilhantemente ora por Emílio Santiago, ora por Alaíde Costa, com Alf apenas acompanhando ao piano.
E foi durante o dueto de Alf e Alaíde que pude perceber o conteúdo emblemático daquele encontro. A interpretação emocionada de Alaíde aliada à temática sofrida de algumas letras de Alf, como as de "Estou só" e "Meu sonho", remetiam a um tipo de música estranha às classificações musicais referentes ao movimento "criado" por João Gilberto. Aqueles sons se aproximavam mais dos antigos lamentos do Blues do que dos ideais da classe média branca carioca presentes num produto que, depois do lançamento de "Chega de Saudade", se convencionou chamar de Bossa Nova. Na verdade, ao evidenciar as nuances e contradições presentes em um movimento estético-musical, Alf e Alaíde - ambos negros e de alguma forma marginalizados na história da Bossa Nova - terminaram por traçar um verdadeiro pathos bossanovista. Delicioso, por sinal.

2 comentários:

  1. Muito bom isso. Na verdade, costumamos, pelo menos nestes tempos hipermidiatizados, pensar na história sempre em termos de ethos, sempre essa construção da imagem de si etc. etc., mas não há destinador sem destinatário; como quer a semiótica, o sujeito da enunciação é sempre esse duplo movimento. A marcha da história é feita também, se não sobretudo, de pathos - dessas paixões despertadas pelo que é outro, do outro, Outro.

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  2. Falando apenas da montagem, sim, belíssima foto...

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