segunda-feira, 30 de março de 2009

Quando o prestígio é também uma lição


Algumas entrevistas nos ensinam muito sobre a pessoa entrevistada (eventualmente também sobre o entrevistador) e, dependendo de quem é o entrevistado, falam ainda do nosso próprio tempo: ensinam a que tenhamos um olhar modificado sobre o que está acontecendo no nosso mundo e, então, é quando sentimos que aprendemos com aquele depoimento e quase que desejamos ser discípulos daquela personalidade, sobretudo, quando se trata de alguém com inegável prestígio.
Na semana passada, eu assistia ao programa Vitrine, na TV Cultura, e o jovem entrevistador Rodrigo Rodrigues conversava com Jonas Bloch que, além de estar completando 50 anos de carreira, lançava sua biografia, pela Coleção Aplauso da Imprensa Oficial.
Em determinado momento, Jonas Bloch elucidou acerca de uma diferença fundamental no mundo artístico, sobretudo televisivo. Ele dizia: é diferente você ter fama e você ter prestígio. Com isso, ele queria dizer que fama, qualquer pessoa que apareça na televisão brasileira pode conquistar em nossos dias. São aqueles 15 minutos de fama, propriamente, e que os participantes de um tal BBB não cansam de comprovar. Já prestigio é o que você conquista com seu trabalho e é o resultado de anos de dedicação ao ofício.
Ele, Jonas Bloch, é alguém de prestígio e Rodrigo conduziu a entrevista muito cônscio dessa condição do entrevistado. A certa altura, perguntou se Jonas Bloch já tinha tido contato com jovens do meio jornalístico e que, de repente, pudessem demonstrar não saber ao certo quem ele (Bloch) era. Ele disse que devido já estar há 50 anos no meio artístico, bem ou mal, todo mundo sabe quem ele é, porém o que ele já notou foi uma particular falta de respeito com a classe, ou com seus colegas de geração, de um modo geral.
Ele a ilustrou contando dois episódios.
No primeiro, uma revista convidara a ele e ao elenco de uma novela da qual ele participava na Record e, quando chegaram ao evento, todas as atenções eram dispensadas ao elenco da novela das 8 da Rede Globo. Ele disse até ter enviado uma carta aos tais organizadores da festa protestando em relação ao episódio. Como podia uma coisa dessas? Quando ele está em determinada emissora não lhe é dada atenção, fingem que não o conhecem. E como será quando ele for novamente fazer um trabalho na outra emissora: aí, então, voltarão a lhe dar a devida atenção?
O outro episódio, diz respeito a falta de tato com os atores no interior das próprias emissoras de televisão. Como hoje valoriza-se muito mais a forma física e a beleza dos atores, ele diz ter ouvido um diretor de elenco perguntar a respeito de determinado ator (nomes não foram citados, é claro) como ele "estava" sem camisa. Ele disse ter ficado enojado com o episódio. E eu que já o tinha como um excelente ator e profissional, agora considero Jonas Bloch uma pessoa ainda mais admirável.

terça-feira, 24 de março de 2009

Revisitando o bondoso Machado


Iniciei-me nos estudos literários quando eu era adolescente e o fiz, em parte, auxiliado pela escola (ainda que muito pouco auxiliado por ela) e, evidentemente, a partir da literatura brasileira. Foi quando conheci Machado de Assis. Nessa oportunidade, pude ler quase toda a obra do nosso bruxo.

Depois, quando iniciei o curso de letras na USP, reli suas obras principais, para a disciplina ministrada pelos Professores José Miguel Wisnik e Nádia Batella Gotlib. Mais adiante no tempo, ainda tive oportunidade de trabalhar alguns textos de Machado com os meus próprios alunos, quando lecionei para o Ensino Médio.

Já faz algum tempo que não retomo Machado e, por essa razão, hoje senti muitas saudades de seus escritos. Fui procurá-los na sua casa. Ao entrar no site da ABL, deparei-me com um link que remetia aos discursos que Machado proferira em vida. Selecionei esse trecho de um discurso que ele proferiu no Passeio Público da capital da República, ao ser inaugurado um busto do Poeta Gonçalves Dias, aos 2 de junho de 1901:

Dizem que os cariocas somos pouco dados aos jardins públicos. Talvez este busto emende o costume; mas, supondo que não, nem por isso perderão os que só vierem contemplar aquela fronte que meditou paginas tão magníficas. A solidão e o silêncio são asas robustas para os surtos do espirito. Quem vier a este canto do jardim, entre o mar e a rua, achará o que se encontra nas capelas solitárias, uma voz interior, e dirá pelo rosário da memória as preces em verso que ele compôs e ensinou aos seus compatrícios.

Quando os discursos do próprio Machado terminam naquela página, então, encontramos um de Rui Barbosa a que chamaram "Oração fúnebre proferida a 30 de setembro de 1908, na câmara ardente do escritor [Machado de Assis], na sede da Academia Brasileira de Letras, ao partir o enterro", aqui chamarei a atenção para esse trecho:

Não é o clássico da língua; não é o mestre da frase; não é o árbitro das letras, não é o filósofo do romance; não é o mágico do conto; não é o joalheiro do verso, o exemplar, sem rival entre os contemporâneos, da elegância e da graça, do aticismo e da singeleza no conceber e no dizer; é o que soube viver intensamente da arte, sem deixar de ser bom. Nascido com uma destas predestinações sem remédio ao sofrimento, a amargura do seu quinhão nas expiações da nossa herança o não mergulhou no pessimismo dos sombrios, dos mordazes, dos invejosos, dos revoltados. A dor lhe aflorava ligeiramente aos lábios, lhe roçava ao de leve a pena, lhe reçumava sem azedume das obras, num ceticismo entremeio de timidez e desconfiança, de indulgência e receio, com os seus toques de malícia a sorrirem, de quando em quando, sem maldade, por entre as dúvidas e as tristezas do artista.

O ressaltar da bondade de Machado irá também aparecer nessa Crônica de Euclides da Cunha, e que aparece na sequência, intitulada "A Última Visita". A ABL informa que ela foi publicada no Jornal do Commercio, em 30 de setembro de 1908, e que foi reproduzida no dia 1 de outubro, por ter saído com incorreções. A referência à sua bondade surge nesse trecho:

Realmente, na fase aguda de sua moléstia, Machado de Assis, se por acaso traía com um gemido e uma contração mais viva o sofrimento, apressava-se em pedir desculpas aos que o assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um descuido ou involuntário deslize.
Timbravam em sua primeira e última dissimulação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o reflexo de sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de sentir, e de agir, que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez embaraçadora e recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranqüila e soberana.

E gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heróico na morte...

Que coisa muito boa eu ter matado minhas saudades e ter encontrado no seu exemplo, lembrado por tais testemunhos, forças para alimentar, também em mim, o desejo de ser bom.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Uma faceta desumana do marketing

Em uma conhecida rua do centro de São Paulo, há um restaurante do tipo self-service. Sempre que passo em frente, na minha hora de almoço, há uma simpática moça de uniforme, na entrada do restaurante, e que me convida, gentilmente, com um sorriso: "Vamos entrar, conhecer a casa...". Eu, por minha vez, abro um sorriso tímido e digo: "Obrigado" e, continuo meu caminho. Todos os dias a moça interpela a mim, bem como a tantos quantos transeuntes passem pela calçada em frente.
Com exceção da moça, nada é convidativo no tal restaurante. Até onde pude perceber o interior é visualmente poluído, é também um lugar para carnívoros e tampouco os preços, anunciados na porta, são convidativos.
Será por conta disso que o proprietário teve a infeliz idéia de criar esse posto para que uma pobre moça fique convidando, incansável e diariamente, possíveis fregueses para a casa?
Hoje pensei: Eu não gostaria de estar no lugar dela...
E esse é o seu trabalho! Ele lhe garante o sustento e, embora, ao menos da parte dela, seja um trabalho honesto, penso que é terrivelmente monótono e mesmo sem sentido: nunca vi ninguém entrar no restaurante como resposta ao seu convite, as pessoas entrarão quando quiserem comer o quê, e da maneira que, aquele restaurante promete-lhes servir.
Assim, a fala da moça é sempre para o vazio e, sem nenhuma intenção - mas tão somente porque cumpre sua obrigação - constrange, ao menos a mim que percorro todos os dias aquele mesmo caminho, sendo, então, convidado por ela a conhecer um lugar que não pretendo nunca adentrar. Mas a verdade é que eu tenho pena da moça. Espero que eu não caia na tentação de lhe ser solidário e, aceitando seu convite, entre no tal restaurante, correndo o risco de ter uma dispepsia aguda, a popular congestão. Seria péssimo!

domingo, 22 de março de 2009

Entre les Murs



Ontem, fui ao HSBC Belas Artes para assistir ao filme Entre les Murs (Os Muros da Escola), do diretor Laurent Cantet. O filme retrata o cotidiano da relação de um professor de Língua Francesa com seus alunos da 7a série de uma escola pública na periferia de Paris. Os alunos são todos adolescentes já bem crescidinhos e a classe é bastante heterogênea, formada, sobretudo, por filhos de imigrantes, africanos, turcos, tem também um filho de chineses (?), alguns filhos de franceses e que também vivem naquela comunidade carente.
O professor é interpretado por François Begaudeau, autor do romance que deu origem ao filme, vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2008. Dos atores adolescentes, ouvi dizer que são alunos de verdade, ou seja, eles eram alunos de uma escola da periferia de Paris e que fizeram uma oficina de interpretação para atuar no filme.
Talvez por isso mesmo, todos os atores estão excelentes no filme: professores e alunos. É tudo muito, muito verdade(iro).
O gostoso do filme é que a gente fica conhecendo uma realidade parisiense muito semelhante à realidade de nossas escolas públicas da periferia de São Paulo, por exemplo. Eu já fui professor em escolas públicas na periferia de São Paulo e do Distrito Federal e conheci e vivi aquelas mesmíssimas situações que o professor retratado no filme vivencia.
A escola é mesmo uma instituição que congressa a difícil tarefa de civilizar as pessoas e o exercício de civilizar é difícil, impõe limites, propõe a tradição da cultura e isso tudo em meio às dificuldades que são de toda ordem: a questão de que isso tem que ser feito considerando a realidade social injusta em que esses alunos estão inseridos, o pulsar das emoções e dos hormônios que estão a explodir na adolescência dos mesmos, a constatação de que o professor também é gente como todo mundo e por isso também pode surtar nesse embate.
A lição do filme, ao menos para mim, é a de que a tarefa do professor é uma escolha, é também uma necessidade e, sobretudo, é a de um aprendizado constante. No caminho do Magistério haverá tristezas profundas, mas também alegrias e aquelas surpresas que redimem toda a espécie de calvário da profissão.

sexta-feira, 20 de março de 2009

A crise e o bombom

Não se fala em outra coisa, ao menos nos meios de comunicação. Eles vivem nos aterrorizando com a crise econômica mundial. Assim, temos o problema do estancar do crescimento dos países emergentes e também o da economia dos países europeus, ou o da potência Chinesa e, sobretudo, o da América de Obama. Isso tudo somado ao fantasma terrível do desemprego em massa e o da volta de uma inflação galopante no lugar da que estivera antes estacionada, e por aí vai.
Eu até acredito que as coisas vão mesmo piorar. Tudo aponta para o pior. Mas nada disso deve ser motivo para cortamos os pulsos. Não, não, não.
Confesso que, às vezes, leio o horóscopo de jornal. Hoje, o li no Estadão e ali Quiroga dizia para mim que sou do signo de sagitário: Mais do que nunca todas as pessoas querem se dar bem, mas ao mesmo tempo, as condições do mundo ficaram limitadas. A ansiedade aumenta de tamanho e desorienta a maioria das pessoas, especialmente as que carecem de coragem.
Aliás, Quiroga também falava, em sua coluna, que a graça da crise atual do mundo financeiro é essa: "nos jogar na cara o resgate do potencial criativo que aguardou pacientemente pelo renascimento."
Já, anteontem, houve uma pane nos computadores da empresa onde eu trabalho. Senti que todos os funcionários entraram em estado de ansiedade, automaticamente, quando se viram cada qual sem sua máquina. Sim, havia ali uma ansiedade coletiva e que acredito parecia ser muito pior por um simples motivo e que apontava para além de uma inação forçada. Tal inação somara-se ao assombro de uma descoberta: não é mais possível trabalhar sem Internet.
Comigo não foi diferente, até que veio ao meu socorro um ato de compaixão: alguém colocara um bombom italiano sobre a minha mesa e, quando retornei, pude saboreá-lo. O pequeno gesto em suas magníficas consequencias revestiu minha ansiedade, pois agora eu tão somente precisava descobrir quem fora o autor daquele gesto e, evidentemente, precisava agradecer. Acho que também é assim com todo o resto. Precisamos descobrir a quem agradecer nossa coragem ou nosso potencial criativo e que nos permitirão renascer, ainda que das cinzas.

quarta-feira, 18 de março de 2009

A Alma Imoral




A Alma Imoral, com Clarice Niskier, é a adaptação teatral do livro A Alma Imoral, de Nilton Bonder.
No preâmbulo da peça, a atriz nos conta como foi que esse projeto surgiu. Ela disse que acerca de dois anos atrás foi a um programa de televisão divulgar um de seus trabalhos no teatro e, de repente, se viu em um programa em que se debatia religião, uma espécie de mesa redonda da qual participava também o rabino Nilton Bonder.
Em determinado momento, a apresentadora perguntou-lhe qual era a sua religião. Ela respondeu que era de origem judaica, mas que se considerava uma judia budista. Uma telespectadora, chamada Dona Léia, enviou um fax ao programa dizendo: "Minha Filha, você não pode ser judia budista. Ou você é bem judia, ou é bem budista."
Esse é o mote para o surgimento da peça. Quando depois, Clarice conheceu o livro de Bonder, decidiu que o adaptaria ao teatro, mesmo que uma Clarice lembrasse a ela que não era possível: ali não havia apelo dramático. No entanto, a outra Clarice acreditava que sim, que era possível que o livro A Alma Imoral pudesse também ser encenado.
E foi o que ela fez, e nos disse, ainda, que foi esse o modo que encontrou para dar a sua resposta para Dona Léia e que lhe ficara devendo naquela ocasião.
Então, somos convidados a ouvir um dos textos mais encantadores sobre a alma e o porquê de sua imoralidade; sobre religião; sobre a possibilidade de ser gente de verdade nesse mundo.
A alma não é amoral, portanto, sem moral, mas imoral, ou seja, não moral(ista).
Clarice é uma grande atriz.
Seu monólogo é também uma aula, é uma leitura possível de uma obra que trata de questões teológicas e que, no entanto, muito provavelmente, já tinha em si a semente do que poderia, sim, ser dito em um palco, como um drama humano e, assim sendo, teatralmente.
Trata-se de um espetáculo emocionante, verdadeiro e... muito sensível.
Agora, quero ler o livro.
De antemão, recomendo ambos: o livro (que ainda não li) e o espetáculo.
A Alma Imoral está em cartaz, todas as segundas e terças-feiras, às 21 h, no Teatro Eva Herz, até 26/05/09.
Esse é o teatro que fica dentro da Livraria Cultura, no Conjunto Nacional, na Av. Paulista.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Palavra (En)cantada



Arnaldo Antunes, Maria Bethânia, Gustavo Black Alien, Adriana Calcanhoto, Chico Buarque de Hollanda, Antonio Cícero, Martinho da Vila, ‘Lirinha’ - José Paes de Lira, Zélia Duncan, Ferréz, Lenine, José Celso Martinez Corrêa, Jorge Mautner, B. Negão, Paulo César Pinheiro, Luiz Tatit, José Miguel Wisnik, Tom Zé. Esse é o elenco do documentário de Helena Solberg. E todas essas pessoas ajudam a diretora a tratar do tema que vai aos poucos sendo revelado pelas palavras dessas pessoas em seus depoimentos, bem como nas canções que nos são apresentadas, em suas imagens, ou seja, o da conjunção entre poesia - que em outras culturas é mais comum ser encontrada na sua versão livro, como uma produção do universo propriamente literário - e canção popular, no Brasil. Portanto, tentam refletir a respeito dos porquês da relação tão rica entre poesia e canção e que no Brasil estão interligadas desde há muito.
O filme é uma gostosa e longa reunião de conversas com artistas de formação distinta. É muito bom ver isso. Inclusive as imagens do encontro de Zeca Baleiro com Hilda Hilst no sítio em que ela viveu em isolamento e avessa a dar entrevistas.
Outra coisa é deliciosa: o documentário conta com outras imagens raras, algumas inéditas. Por exemplo, uma que muito me emocionou, a encenação de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto, num Teatro Universitário em Nancy (França). Isso é mostrado quando o Chico Buarque está explicando como foi a participação dele na peça: ele conta que foi "irresponsável" pois musicou a poesia de um poeta que não gostava de música, embora ele não soubesse e pouco conhecia da obra de Cabral naquele tempo.
Também é lindo de ver uma apresentação de Dorival Caymmi, nos anos 40, cantando e tocando ao violão sua famosa canção O Mar.
A gente pode se emocionar muito assistindo esse trabalho. Mas se a gente chorar é de pura emoção e alegria, por essa gente linda existir, pelo artista brasileiro ser tão talentoso e cantar tão bonito, sempre. Recomendo. Eu fui ver no Cine BomBril, no Conjunto Nacional. Está em exibição na sala 2 daquele cinema, sempre às 18h20min. (única sessão).

quinta-feira, 12 de março de 2009

A Caixa Preta de Amós Oz


Estou lendo o romance A Caixa Preta, de Amós Oz. Já me aconteceu de, ao ler um romance, e também tem acontecido com esse, imaginá-lo como se fora um filme.
Contudo, trata-se de um "filme" em que o leitor o constrói, preenchendo as lacunas do descrito no livro, portanto, criando, livremente e a partir da base escrita, as imagens dos cenários, cenas e atuações dos atores/personagens. Penso que tal filme será, necessariamente, sempre mais rico, ao menos para esse leitor em particular, do que um filme que porventura algum diretor de cinema possa de fato vir a fazer baseado naquele romance, ainda que existam diretores talentosíssimos e que sempre apresentarão sua própria e, por que não?, apropriada leitura.

Acredito mesmo que alguns romances quase que solicitam esse exercício de imaginação visual, ou seja, a interação com o suposto filme e que ali foi também engendrado.
A Caixa Preta é exatamente assim. Para quem ainda não leu o romance, saiba que nele seu autor se vale da clássica forma do romance epistolar.
Vejam só esta descrição de si mesmo, em uma "cena" construída pela personagem Alex Guideon, professor e escritor mundialmente famoso, ex-marido de Ilana Sommo, em uma das cartas-respostas que lhe escreve. Li esse parágrafo como se também fossem as indicações de cena de um diretor para o ator que a interpretasse, no cinema, no papel de Alex Guideon. Vejam lá:

Tente visualizar este homem, se conseguir - mais magro do que você se recorda e com muito menos cabelo, calças de veludo cotelê azul e uma malha vermelha de cashmere. Mesmo que basicamente, como você diz, ele esteja em preto-e-branco. Parado à janela, a testa colada ao vidro. Os olhos nos quais você localiza "uma maldade glacial" examinam o mundo exterior onde a luz está apagando. As mãos no bolsos. Cerradas. De tempos em tempos, ele dá de ombros e resmunga à moda inglesa. Uma espécie de frio perpassa seus ossos. Ele estremece, tira as mãos dos bolsos e abraça os ombros. É o abraço daqueles que não têm ninguém. E mesmo assim, certo elemento animal confere à sua postura silenciosa junto à janela algumas características de tensão interior - como se estivesse totalmente alerta para voltar-se como um raio e antecipar-se aos atacantes.

Conversando com uma amiga que já leu o livro, comentei que o mais comovente e significativo é que o leitor vai conhecendo a história por meio das cartas e que são todas muito contundentes, há um conflito abissal entre os personagens, e, no entanto, você não pode tender para o lado de nenhum dos envolvidos: ninguém é culpado, mas também ninguém é inocente. Aliás, é isso o que mais interessa em histórias bem contadas no mundo literário ou cinematográfico: o leitmotiv é revelar que o movimento dialético da culpa e inocência é intrínseco à experiência do viver a vida humana.

Não vou resistir e vou trazer também um pouco da palavra da personagem feminina. Ilana responde à carta de Alec (é assim que ela chama o ex-marido Alex Guideon):

Há felicidade no mundo, Alec, e o sofrimento não é o seu oposto, mas a saída estreita através da qual passamos encurvados, arrastando-nos entre urtigas, à procura da clareira na floresta silenciosa banhada pelo luar de prata.
E, ao fazer uma re-citação de si mesma, em outra carta, teremos uma variação sobre o mesmo tema:
Há felicidade no mundo, Alec, e o sofrimento não é o contrário dela, é o atalho espinhoso ao longo do qual andaremos rastejando até a clareira daquela floresta, sombreada pelo luar claro e prateado, que nos chama e espera por nós. Não se esqueça. Ilana

terça-feira, 10 de março de 2009

Far from Heaven

A semana passada aconteceu uma coisa horrível no nosso país. Uma garota de apenas 9 anos sofreu um aborto. Antes disso, sofrera um estupro do próprio padrasto. A mãe e a equipe médica que correram ao seu socorro, provavelmente, foram os que de fato decidiram: a menina corria risco de morte e por isso se valeram da brecha na lei que permite a interrupção da gravidez. Ficamos sabendo de tudo isso porque um bispo da Igreja Católica fez o favor de nos lembrar que estavam todos excomungados (uma vez que a Lei da Igreja é taxativa: nesse caso, excomunhão automática). Com excessão da menina, que salvou-se da penalidade: Graças a Deus menores de 16 anos não podem também sofrer a excomunhão em casos semelhantes, segundo o mesmo código canônico. O bispo tinha uma cara muito antipática nas fotos que saíram nos jornais. Não parecia um homem de Deus. Embora parecesse defender os embriões (sim, ela estava grávida de gêmeos!) que se foram, ou antes, não vieram a esse mundo. Nosso Presidente lembrou-nos que a Medicina parecia estar mais com a razão. A verdade é que ficamos todos atônitos, pois sabemos que todas as crianças em questão foram aqueles que, de verdade e mais, sofreram nesse caso doloroso.

segunda-feira, 9 de março de 2009

A Parada Terminal da Fofoca !

Ontem, eu via na tv aberta uma homenagem aos 80 anos de Hebe Camargo. Em meio às inúmeras cenas televisivas de sua carreira, exibiram uma passagem em que ela entrevistara Chico Xavier, talvez na década de 70. Hebe muito séria e compenetrada dissera na ocasião, ao final da entrevista: "Eu gostaria que o senhor deixasse uma mensagem aos nossos telespectadores, a todas as famílias, aos casais que estão se separando: essa coisa tão triste, a dissolução das famílias..." Ao que me pareceu, a intenção dela era ir por aí adiante, mas então, Chico Xavier a interrompeu elegantemente e afirmou: "Nós devemos evitar o mal sempre, não devemos dizer uma palavra que seja má. Nós devemos ser a Parada Terminal da Fofoca."
Eu achei ótimo!

domingo, 8 de março de 2009

Deus dando a paisagem o resto é só ter coragem

Ontem, eu estava só e bebendo uma cerveja em uma padaria do meu bairro: um bairro obscuro da periferia da Zona Leste da cidade de São Paulo. De repente, senti um desejo enorme de escrever. Eu tinha uma caneta. Não tenho um moleskine, então, escrevi em um daqueles guardanapos de papel de tv de balcão. Vejam o que escrevi no guardanapo:
"Quando tudo está bem ou bom nos sentimos bem e somos bons. O que fora mal e nos fizera maus é apenas uma lembrança longínqua. Graças a Deus! Parece-me evidente que mesmo nessas circunstâncias não se dissipa o estado de alerta ou vigilância. Ainda que estejamos inebriados pela brisa benfazeja. Assim vive quem espera sempre o pior: tudo o que de fato lhe acontece não é pior do que aquilo que poderia ser ainda mais doloroso ou dilacerante. Desconfio que o que dilacera o ser só ocorre quando estamos fora de nós mesmos: desavisados acerca do Mistério da existência. Quando comungamos com o Mistério há a possibilidade de se estar em paz, ainda que o mundo desabe à nossa volta. O mundo está sempre desabando e dialéticamente se reconstruindo. Creio que é preciso entender que somos parte dele e desabar ou se reerguer com ele são tão somente possibilidades. Sim, o segredo desse movimento é absoluto. Já o convívio com esse segredo exige concentração. É preciso ter força para amar."

sábado, 7 de março de 2009

Da importância de ser útil

Essa semana tive uma experiência tocante. Eu ia para o trabalho e encontrava-me dentro de um vagão do metrô paulistano, relativamente lotado.
Senti um toque no meu braço e voltei-me. Um homem moreno, por volta dos quarenta anos, disse-me: Posso lhe fazer uma pergunta? (Aqui devo confessar que fiquei de sobressalto, em geral esse tipo de abordagem já me arma: O que será?! Tanto foi assim, que apenas assenti com a cabeça.)
Então ele falou: Eu tenho um filho de dezesseis anos que me relevou que é gay. Eu fiquei muito perdido com essa situação, não estou sabendo orientar meu filho e nem a mim mesmo. Eu não estou sabendo como reagir e queria saber se você, por um acaso, não conhece um livro que eu pudesse ler sobre o assunto, para eu me informar melhor. Desculpe, por estar colocando esse problema para você, mas é que eu percebi que você é uma pessoa mais velha, da minha idade, e imaginei que talvez pudesse me orientar a esse respeito. Desculpe mesmo.

Fiquei tão tocado, achei tudo tão civilizado e correto e sincero. Era um apelo de um pai com um filho gay, aliás, absolutamente contemporâneo: Saiu do armário aos 16 anos!
Então, eu disse:
Não se preocupe. Você está corretíssimo. Não fiquei aborrecido e penso que posso mesmo ajudá-lo: conheço um livro que é justamente indicado para esse tipo de situação. Agora não tenho os dados do livro comigo. Mas posso enviá-los por e-mail.

Trocamos os endereços. Ele ficou agradecido.
Deixo aqui as referências do livro: CASTAÑEDA, Marina. A Experiência Homossexual: explicações e conselhos para os homossexuais, suas famílias e terapeutas. São Paulo: A Girafa Editora, 2007.

O livro traz uma epígrafe belíssima e que penso resume o que, no fundo, sabíamos que sentíamos aquele pai e eu, no metrô paulistano:

Ce que nous n'avons pas eu à déchiffrer, à éclaireir par notre effort personnel ce qui était clair avant nous, n'est pas a nous. [O que não temos que decifrar, que esclarecer pelo nosso esforço pessoal, o que era claro antes de nós, não nos pertence.] Marcel Proust

quarta-feira, 4 de março de 2009

A transcendência de Adélia.

Hoje, ouvi, durante cerca de uma hora e meia, a poetisa Adélia Prado. Foi uma honra e um encantamento. Ela é tão verdadeira, tão verdadeira, que emociona a ponto de nos fazer chorar. Para Adélia Prado, credo e poética são iguais, inseparáveis. Liturgia e Vida idem. Trata-se de expressões dos afetos, como chamou. Utilizando-se da imagem de Guimarães Rosa disse-nos que a oração nasce de um terceiro lugar em nós, a terceira margem da alma. Falou-nos de Poesia como Revelação, como Epifania do Real. Confirmou-nos que a Fé é aventura permanente e é Fé no Mistério. Trata-se de uma atitude extremamente pessoal e que dá sentido para a minha vida, a Fé. Lembrou-nos que o que é Divino, o Sagrado, provoca terror, medo e, por isso mesmo, transforma. Contou-nos que Santa Tereza dizia, depois dos seus êxtases: "Mais um minuto e eu teria morrido." Exortou-nos a crer na e promover a Beleza, porque Beleza não é luxo, é necessidade. De tudo o que nos falou, e que seria impossível resumir num post, registro sobretudo uma informação que, espero, sirva também de apelo: a importante informação de que estamos sem vida interior, orando pouco...

Arte Sacra by Cláudio Pastro


Ontem, conheci Cláudio Pastro, no Colóquio Arte & Transcendência. O artista brasileiro, desde 1975, dedica-se à arte sacra. Parece mesmo que é o único artista brasileiro vivo a se dedicar a essa arte. Ele cursou teoria e técnicas de arte na Abbaye Notre Dame de Tournay (França), no Museu de Arte Sacra da Catalunha (Espanha), na Academia de Belas Artes Lorenzo de Viterbo (Itália), na Abadia Beneditina de Tepeyac (México) e no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Tem realizado pinturas, vitrais, azulejos, altares, cruzes, vasos sagrados, esculturas, presbitérios, capelas, igrejas, mosteiros e catedrais no Brasil, Argentina, Bélgica, Itália, Alemanha e Portugal.
Ilustrou os seguintes livros: Os diálogos de São Gregório Magno (Alemanha), Vida de Santo Antônio (Itália), Músicas natalinas para crianças (Itália), A Virgem de Guadalupe (Alemanha, Espanha e Brasil), entre outros.
Atualmente dá cursos de Estética e Arte Sacra em seminários, escolas teológicas, mosteiros, museus e faculdades.
Para quem ainda não sabe: ele é o responsável por todo o projeto atual da Basílica de Nossa Senhora Aparecida. Que, aliás, está belíssima e creio que ficará ainda mais. Ele disse-nos que ainda tem muito por ser feito em tal projeto.
Importante: você não precisa ser católico para se encantar com o trabalho dele. Trata-se do sagrado, portanto, do que está acima de qualquer religião com endereço próprio e ainda que a expressão do seu trabalho tenha a marca de sua fé cristã.

terça-feira, 3 de março de 2009

Arte & Transcendência

Ontem, na abertura do Colóquio Arte & Transcendência, na Escola Dominicana de Teologia, o Prof. Dr. Alfredo Bosi lembrou-nos que transcender difere de ascender, sobretudo porque enquanto esse segundo verbo implica também em movimento, nele, no entanto, se enfatiza o ponto de chegada e que está fora do eu, ascender: subir-se, elevar-se, atingir. Já a transcendência implica em um movimento que tem necessariamente o próprio ponto de partida como referência. O eu transcende. Portanto, parte-se da imanência para a transcendência.
São Francisco de Assis, o santo poeta, inaugurou, por assim dizer, a poesia em língua italiana com o seu Cantico delle Creature (Cântico das Criaturas), em 1224. O professor alertou-nos para o fato de que além do ideário medieval e bíblico, presente na introdução do seu poema, ele inova quando utiliza a partícula per do italiano arcaico. Laudato si', mi' Signore, per sora luna e le stelle e, como é possível perceber, com destacada ambiguidade (uma possível dupla conotação para o emprego da partícula é, aliás, objeto de estudos de eruditos e ponto de controvérsias). Assim, devemos louvar a Deus pelas criaturas (por suas criaturas, o sol, a lua, as estrelas, o vento, etc) como também Deus deve ser louvado pelas próprias criaturas (por cada uma dessas criaturas). O que me pareceu de particular significação é que, nesse contexto, ele também nos propõe louvar a Deus pela irmã morte Laudato si', mi' Signore, per sora nostra morte corporale. Não me surpreendeu tal inclusão da personificação da morte no contexto dos motivos pelos quais devemos louvar ao criador. Mas é fato que, no nosso cotidiano, as pessoas só rezem para pedir, quase não louvam, ou não veem motivos para louvar e o que é mais sintomático: peçam, primeiro, para não morrer. Ao menos não ainda ou tão cedo. Só alcançando a transcendência necessária, e que a arte nos possibilitaria, para fazer também nossas e com um átimo de verdade as palavras do santo em sua poesia transcendental.