quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Estio da alma


Sabe quando você entra em um elevador e ouve uma conversa já iniciada entre os interlocutores e, portanto, só ouve uma frase solta? Pois bem, foi o que aconteceu comigo ontem, quando ouvi um rapaz dizer: "É, tolerância zero..." Imediatamente pensei: nunca gostei desse slogan. Então, sai do elevador pensando na questão da tolerância. Creio que o substantivo ou mesmo o verbo tolerar já são suspeitos, pois se temos de tolerar... Mas são palavras que existem e como todas as palavras servem de roupagem para o espírito de uma atitude, e, portanto, um modo de ser e estar no mundo.


Era a hora do meu cafezinho e saí à rua. E, naquele momento, tínhamos um sol claro e generoso banhando os paulistanos que transitavam pelo centro. No centro de São Paulo, algumas ruas são chamadas calçadões porque nela não transitam carros, apenas pedestres. Sentindo o sol e vendo toda aquela gente descansada pelo bem-vindo intervalo da chuva, pensei que viver é uma aventura possível, apesar de tudo.
Penso que é possível porque o exercício delicado de tolerância a que somos submetidos, diariamente, já é por si só instigante. Quanta gente encontramos todos os dias, e que são verdadeiros poços de mistério, o qual se revela, aos poucos, por meio das contradições de cada um.
Em um único dia, podemos ouvir de tal pessoa um elogio e de outra um xingamento. Quiça um flerte da pessoa certa, ou mesmo da pessoa errada. Além dos aborrecimentos que virão, irremediavelmente, fruto das atitudes dessas mesmas pessoas, a cada dia. Sim, a disposição em tolerar isso tudo e o que mais vier é deveras instigante, realmente.
Sobretudo, quando sabemos que só se tolera a alguém, buscando as forças mais generosas que possam ser encontradas dentro dessa pessoa tolerante (o adjetivo é mais bonito do que o verbo, vejam só). Para muitos, essa força pode ser encontrada na própria educação, no ser civilizado, e no compartilhar as regras de urbanidade. No entanto, acho que essa polidez não é suficiente. Afinal, lembro-me de ter lido, em algum lugar, que ser polido por polidez não é educado, isso seria uma contradição que anularia a própria força e o sentido da polidez. Talvez tenha sido Merleau-Ponty quem tenha dito isso, a ver. Assim sendo, entendo que a polidez só funciona quando é predisposição verdadeira do espírito.
Resta saber como conhecermos tão bem nosso próprio espírito a ponto de ele estar afinado naquele instante mesmo no qual o que se pede é o que seria uma espécie de tarde de estio da alma. É deveras um desafio ter o espírito como essa tarde solar mesmo que a tempestade mais tormentosa se instaure em um encontro, dentro de um elevador, por exemplo. Vejam só, já não seria mais do que instigante o exercício da tolerância necessária nesse tipo de circunstância e que a própria vida, sem avisar, trata de engendrar?

3 comentários:

  1. "Tolerância zero" é parente de "rota na rua" e de "comunista é traíra", entre outros bordões como o "é uma vergonha" do Boris Casoy, aquele arremedo de pessoa que recentemente achincalhou os três garis que, abraçados, tinham acabado de fazer um voto de feliz ano novo lindo, sincero, polidíssimo... pra fechar o jornal.

    Me lembrei de uma canção bem ritmada do Karnak que a-do-ro, é um mantra brasileiro que só: "Mó muntuera"


    Mó muntuera
    Mó muntuado
    Muvuca mutum
    Mocó tijuco tijuco tijuco

    A gente não odeia quem a gente não ama
    A gente não ama quem a gente não ama
    A gente não odeia quem a gente não odeia
    A gente não odeia quem a gente não ama

    Mó muntuera
    Mó muntuado
    Muvuca mutum
    Mocó tijuco tijuco tijuco

    Respeitar a diferença não tem nada a ver com tolerância, que é um esforço de civilidade a que se é obrigado por força moral ou de lei...

    ResponderExcluir
  2. Discordo um pouco disso tudo.
    Quando nos esforçamos a fazer algo que não queremos e fazemos bem, da forma mais polida e ética possivel, nos mostramos mais racionais e menos emocionais, nesse caso nos fazemos mais humanos e menos animais, creio eu.
    A tolerância pode ser um esforço ético do ser. Muitas vezes, torelamos certas pessoas e/ou atitudes, fazendo então o exercício de civilidade.
    Muitas vezes tolerar é respeitar, muitas vezes o que não vale para mim, valerá para ti.
    Nesse caso eu tolero, como tolero muitas coisas que não gosto, tolero as vezes por amor, tolero as vezes por amizade, tolero as vezes a mim mesma.
    Tolerância, como vc mesmo disse, é mais bonito que tolerar. Então, sendo o adjetivo mais bonito que o verbo, fico tolerando o tolerar e acreditando que a tolerancia, se usada com mais frequência e com uma pitada de bom senso, seria um quase saber viver.

    Estamos vivendo num tempo de tolerar as diferenças que se assentuam, e a necessidade de cada um em ser o que deseja.

    Abraço!

    ResponderExcluir
  3. Eu estou achando que, no final das contas, estamos todos falando aqui de uma coisa só.
    Minto. Só eu não falei. Tanto a Lu quanto a Olyvia falaram em amor...
    Mas também faço coro: é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. rsrsrs
    Desconfio que é disso que estamos falando.
    Ah, e o mais importante: há amanhã e pode haver amor. ;-D

    ResponderExcluir