sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A escolha divina e maldita do poeta


Li, ontem, um ensaio que foi publicado originalmente em uma revista de Florianópolis chamada Morcego Cego, em 1997. Agora, ele está reunido numa coletânea de ensaios de Ivan Junqueira, poeta, crítico literário e tradutor, no livro a que ele chamou O Fio de Dédalo, publicado pela Record, em 1998. O ensaio a que me refiro trata de A modernidade de Cruz e Souza. Sempre admirei esse nosso poeta simbolista, autor de poemas de uma intensidade e profundidade como nunca vi, como, por exemplo, as que notamos no soneto Triunfo Supremo e que, aliás, Junqueira Freire reproduz no corpo do ensaio, integralmente, para que tudo o que ele dizia acerca do poeta e sua obra ficasse “mesmo e afinal por dito”.
Eu irei fazer o mesmo aqui, para que aqueles que têm sensibilidade para a poesia entendam a grandeza desse nosso poeta, por conta própria:


Quem anda pelas lágrimas perdido,
Sonâmbulo dos trágicos fragelos,
É quem para sempre deixou esquecido
O mundo e os fúteis européis mais belos!

É quem ficou do mundo redimido,
Expurgado dos vícios mais singelos
E disse a tudo o adeus indefinido
e desprendeu-se dos carnais anelos!

É quem entrou por todas as batalhas,
As mãos e os pés e o flanco ensanguentado,
Amortalhado em todas as mortalhas.

Quem florestas e mares foi rasgando
E entre raios, pedradas e metralhas,
Ficou gemendo mas ficou sonhando.

Há uma passagem bastante importante no ensaio de Junqueira, na qual ele questiona a comum interpretação acerca da obsessão que Cruz e Souza tinha pelo branco, revelada em muitos dos seus poemas. Eu também sempre ouvi que isso talvez se devesse ao fato de ele ser negro. Junqueira sugere uma outra leitura desse traço de sua poesia, em particular. Ele acredita que essa obsessão está associada à “metáfora sobre a geração da luz” de um Ezra Pound ou ainda mais, está relacionada àquele "branco dantesco que inunda cada um dos cantos do Paradiso”, afinal, como já nos dissera Haroldo de Campos, “Dante prolonga, sustenta e totaliza essa especulação radiosa sobre um Amor que é Luz”.
Ao final do ensaio, Junqueira cita ainda um pesquisador, Alexei Bueno, que descobriu cartas escritas por Cruz e Souza e dentre elas uma escrita a um amigo do poeta, Luis Delfino. Diz Bueno: “Dolorosa carta esta (...) na qual o poeta pede insistentemente ao seu êmulo e conterrâneo qualquer auxílio monetário, mais um reflexo da pavorosa miséria em que se debateu o poeta até a morte.” Ivan Junqueira, então, termina seu ensaio nos provocando com uma questão que a mim emocionou devido a uma densidade vertical que carrega em si mesma:
“E quantos entre nós, acrescentamos de nossa parte, não padeceram – ou padecem ainda hoje – as agruras que resultam da escolha a um tempo divina e maldita que fazem todos os autênticos poetas?”
Essa leitura eu tinha que compartilhar. Trata-se da mensagem de um erudito e que também é poeta, e mais do que sua erudição, sempre bem vida, sinto que todas essas questões presentes na poesia de Cruz e Souza, e que foram resgatadas pelo crítico, são as questões que importam ser ditas e ouvidas, mas não é o que ocorre comumente em nosso cotidiano, não é mesmo?

2 comentários:

  1. Viva a escolha a um tempo divina e maldita!
    Belo texto, bitcho.

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  2. Creio que todas as escolhas são divinas e malditas - são escolhas, afinal... Ganha-se ao perder-se, perde-se ao ganhar-se - deus e o diabo o tempo todo. Mas importa é perceber, acho, que há pessoas que bancam mesmo essa condição da escolha, feito gente grande. E isso é o que pouca gente dá conta de fazer: olhar a inteireza de que cada passo é feito. Tem gente que se mata, tem gente que enlouquece, tem gente que adoece... Tem gente que fica vivo e são e vai, meandricamente, singrando pela vida - horas de aflição, horas de delícia... Pra mim, essa brancura toda do poeta dá uma angústia enorme, sinto-a mais como a brancura leitosa de que fala Saramago no "Ensaio sobre a cegueira", essa brancura que é todas as cores ao mesmo tempo, um excesso, uma overdose obnubilante.

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