sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Kar

Eu pensei em não falar desse livro que ora leio porque ele é um livro difícil de se falar about. Aliás, li essa resenha  do livro, em que o resenhista começa por dizer que finalmente tivera coragem de falar sobre esse livro, por que era isso mesmo, para falar desse livro é preciso ter coragem. rsrsrs Assim sendo, eu, aqui, vou apenas fazer o que, aliás, costumo fazer, quando se trata de falar dos meus livros em leitura, dar uma notícia, tão somente, de uma leitura que faço.
Fico também me perguntando como eu poderia falar da experiência intensa de ler um romance que trata de um universo tão peculiar, como esse sobre o qual no livro se narra em urdidura.

Bem, o romance Neve (Kar, em Turco) é um livro da literatura contemporânea da Turquia. E o que eu conheço da Turquia? Muito pouco, com exceção do que vim a saber por intermédio de um grande amigo catalão, e que sempre me fala de seus cantantes, músicos e grupos musicais. Para Enric, a cultura de todo o mediterrâneo é importantíssima e lhe é muito querida. Essa semana, aliás, Enric nos fala de uma banda de punk rock de Istambul, no seu excelente blog Bosphorus.
Penso que agora poderei, provavelmente, conhecer ainda um pouco mais da Turquia, e isso tão somente acompanhando a ótica dessa cultura tal como é exposta nesse romance do grande escritor turco, Orhan Pamuk, Prêmio Nobel de Literatura.
É que, em Neve, o autor situou suas personagens em uma cidade que parece representar bem o que ele deseja. Trata-se de Kars, na fronteira com a Geórgia, uma cidade outrora rica e que, na época em que se passa a história que ele narra, está abandonada a sua própria sorte e que, mesmo assim, ou por isso mesmo, vivencia conflitos que são bastante intensos: entre o Estado secularista e os representantes da tradição islâmica. Ambos se embatem ali e o que está por trás desse embate é a própria condição humana. Uma sinalizador disso, por exemplo, é o estopim do conflito e que se dá, penso que simbolicamente, pela notícia de moças que, impedidas de frequentarem a escola cobertas por seus véus de devoção religiosa, passaram, talvez por ou também por esse motivo, a cometer suicídio.
Portanto, há no livro, entre outras, essa questão, a dos homens que se organizam politicamente, e que também são representados na obra, muito profundamente, pela sua organização interna, seja ela filosófica ou religiosa. Portanto, nessa cidade iremos assistir à construção de um microcosmo dos conflitos raciais, políticos e étnicos da Turquia, bem como veremos nela, de modo suplementar, o palco de uma tragédia bem pessoal, ou seja, a do protagonista do romance: Ka, o poeta.
Durante a leitura, é impossível não pensarmos em que outro romance, senão em um romance cuja personagem protagonista seja um poeta, encontraríamos a alusão a um tipo de sentimento, como o que é expresso nessa passagem que ora cito:

Foi assim que Ka ouviu o chamado do fundo de si: o chamado que ele ouvia nos momentos de inspiração, o único som que podia fazê-lo feliz, o som de sua musa. Pela primeira vez em quatro anos, um poema vinha até ele. Embora ainda precisasse ouvir as palavras, ele sabia que já estava escrito; mesmo aguardando em seu lugar escondido, o poema irradiava a força e a beleza do destino. O coração de Ka se encheu de alegria.

Ou ainda:

"Aqui nós temos duas diversões. Falamos sobre tudo o que nos acontece e vemos televisão. E até conversamos enquanto vemos televisão. E enquanto conversamos, vemos televisão também. Minha irmã é muito bonita, você não acha?"
"Sim, ela é muito bonita", disse Ka num tom reverente. "Mas você também é bonita", acrescentou delicadamente. "E agora você vai contar isso para ela também?
"Não, não vou lhe contar. Vamos ter um segredo para partilhar. É a melhor maneira de iniciar uma amizade." E ela sacudiu a neve que se acumulara em sua comprida capa de chuva roxa.

Sim, meus caros, o mais delicioso nesse livro é que ele é ambientado e construído considerando um tema presente e que nos parece sempre atual em se tratando da Turquia e mesmo do que hoje chamamos de mundo globalizado, mas o livro extrapola o mesmo e o faz pelas frestas das questões atemporais: essas que não carecem de globalização política ou econômica porque pertencem à condição humana em todo tempo e lugar.
Acerca do estilo do romancista eu ainda não poderia me referir como conviria, uma vez que estou tateando por ele. Apenas gostaria de chamar a atenção para a organização dos capítulos, o modo como cada um deles, em seus títulos (isso mesmo, cada capítulo tem dois títulos), nos são apresentados. O primeiro título é apresentado em tipos maiores, e trata-se da citação de um trecho presente no interior do próprio capítulo e, na linha inferior e em tipos menores e em itálico, aparece, então, aquele que seria o título do capítulo, simplesmente, sem ser uma citação do corpo do texto, sendo também o que consta no Sumário. Isso resulta, já de antemão, em uma certa tônica do livro: o tempo todo permeado de diálogos profundos. Vejam que lindos exemplos:

O Silêncio da Neve
A viagem para Kars

Não estou tomando muito tempo do Senhor?
A primeira e última conversa entre o assassino e sua vítima

O que faz a beleza deste poema?
Neve e felicidade

Na Europa eles têm um Deus diferente?
Ka com o sheik efêndi

Como ainda leio o livro e estou apenas na página 132, não posso mais me estender, quero ainda apenas dizer que se trata de um livro muito sofisticado desde o princípio, uma vez que conta, por exemplo, com epígrafes que foram escolhidas com muita precisão e penso que para nos dar, também de antemão, aquilo que poderíamos chamar de o “tom” da história que vamos ouvir. É bem o caso dessa primeira, e citando-a paro de falar nessa experiência de leitura por demais densa e prazerosa!

Nosso interesse vai para a perigosa fímbria das coisas.
O ladrão honesto, o assassino delicado.
O ateu supersticioso.
                       Robert Browning, “Bishop Blougram’s Apology”

2 comentários:

  1. Neve, Kar, Aput, Snö...Jo...

    Meu livro tem 498 páginas, assim, 132 é nível suave; acredito, depois a nevasca chegará cobrindolo todo, corações, vidas e esperanças de que algo va a trocar...literacia é, finalmente, a droga para vida literária, aquí e em Turquia.

    Obrigado pela grandiloquência “grande amigo”.

    Frias apesar de apaixonadas saudades from Mediterranean coast.

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  2. Enric,
    Entendi, até a página 132 é nível suave mesmo! Hoje li um trecho, mais para a frente, tão bonito de cumplicidade do casal protagonista...

    Sim, a neve no livro não para de cair: posso imaginar o quanto isso irá pesar...rsrsrs

    Você será sempre o meu blogueiro preferido! ;-)

    Calorosas saudades from São Paulo. <3

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