Eu ganhei um livro magnífico de presente de aniversário. Insisto terminantemente, aqui, para o fato de que quem ainda não o leu deve fazê-lo: por tudo o que há de mais sagrado nesse mundo!
E posso falar isso porque seu autor, Benjamin Moser, considera a personagem da biografia que escreveu, simplesmente a autora de uma obra que é a maior autobiografia espiritual do século XX. Sim, eu ganhei o livro Clarice, [em português o título é esse mesmo, o primeiro nome da escritora seguido de uma vírgula; em inglês, o título original é Why this world].
Um tempo atrás, li matérias que falavam da descoberta do nosso bruxo Machado de Assis por uma estudiosa norte-americana, o que ajudou a fazer com que o nosso grande escritor brasileiro pudesse ter uma maior repercussão de sua obra pelo mundo. Com raras exceções, como um Guimarães Rosa que foi muito traduzido, ou Jorge Amado, ou ainda, o controverso Paulo Coelho, a literatura brasileira não ganha tanto status internacional porque ela acontece na língua portuguesa que não é tão falada pelo mundo afora quanto o inglês, o francês e o espanhol.
Então, de vez em quando, aparecem essas almas generosas que decidem anunciar aos quatro ventos um tesouro cultural brasileiro, sempre sem igual. É o caso de Clarice Lispector e, lendo o livro, eu sinto que nós admiradores brasileiros da grande escritora fomos, enfim, também resgatados junto com ela. Benjamin Moser fez o que todos nós gostaríamos de ter feito, ou seja, poder dizer ao mundo que, sim, Clarice é incompreensível apenas para quem não compreende que ser gente é isso mesmo: é poder ser o que ela foi para tantos, portanto, quase tudo. Como diz Moser:
A alma exposta em sua obra é a alma de uma mulher só, mas dentro dela encontramos toda a gama da experiência humana. Eis por que Clarice Lispector já foi descrita como quase tudo: nativa e estrangeira, judia e cristã, bruxa e santa, homem e lésbica, criança e adulta, animal e pessoa, mulher e dona de casa. Por ter descrito tanto de sua experiência íntima, ela poderia ser convincentemente tudo para todo mundo, venerada por aqueles que encontravam em seu gênio expressivo um espelho da própria alma. Como ela disse, “eu sou vós mesmos”.
O jovem escritor, aliás, é uma pessoa adorável. Há inúmeras entrevistas que ele concedeu na época do lançamento do livro. A que eu mais gosto é essa aqui, concedida para o programa Metrópolis da TV Cultura. Percebemos alguém que fala português muito bem, e isso faz compreendermos por que sua intimidade com a obra da escritora é tão intensa e também por que os resultados da pesquisa são tão ricos quando, por exemplo, ele situa o contexto histórico brasileiro a cada evento da vida da escritora. Aliás, eu gosto muito do olhar de fora para a nossa história, sobretudo quando é feito com tanto respeito.
Um aspecto tocante do livro é todo o seu início, contanto as origens de Clarice, e o sofrimento de sua família em fuga dos horrores da guerra e da pobreza. As revelações são absolutamente intensas e tão emocionantes que eu, sensível que sou, tenho de parar a leitura porque as lágrimas embaçam-me a visão.
Como os grandes livros, esse é um para não se ler em público, ele desnuda Clarice e, por conseguinte, também o leitor, que se vê tocado no fundo da alma por uma emoção que não é possível ficar muito exposta: os outros jamais entendem porque choramos em público!
Há também passagens engraçadas, porque a Clarice é o tipo trágico que também pode ser cômico. Ele conta, por exemplo, que certa feita ela dava uma entrevista e aconteceu o seguinte diálogo entre a escritora e a repórter:
- Você tem paz, Clarice?
- Nem pai, nem mãe.
- Eu disse “paz”.
- Que estranho, pensei que tivesse dito “pais”. Estava pensando em minha mãe alguns segundos antes. Pensei – mamãe – e então não ouvi mais nada. Paz? Quem é que tem?
Outra passagem, entre tantas magníficas do livro:
Com uma amiga [na infância], ela [Clarice] roubava rosas dos jardins dos recifenses mais endinheirados: “Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha.” Ela e uma amiga entravam correndo no jardim, colhiam uma rosa e fugiam. “Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.”
Eu trouxe para cá essa passagem, porque eu já vivi isso na minha infância, eu também roubava rosas e penso que essa é apenas uma das inúmeras passagens dessa biografia que é antes de tudo acerca dessa autobiografia espiritual e que sempre possibilitou que sentíssemos Clarice como alguém que é cada um de nós ou pode estar em cada um de nós também, seja como pessoa que ela foi, e como espírito que é.
Excelente post, Josafá...
ResponderExcluirA. Facioli
Obrigado amigo!
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