quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Hosanna

Ontem, vivi uma experiência muito próxima do que eu falava aqui no último post. Devo isso a um amigo que assina a temporada de concertos do Mozarteum Brasileiro e que, lamentavelmente, não poderia ocupar seu lugar cativo na Sala São Paulo. Sou imensamente grato a essa pessoa querida por ela ceder-me esse lugar de privilégio!
;-)


A que experiência eu me referia? Daquela experiência que, parafraseando Bruno Latour, podemos chamar de “politemporalidade”. Isso porque, sendo um morador da cidade de São Paulo e vivendo em 2010, estive naquela magnífica Sala São Paulo - que por si só é uma manifestação "híbrida", ela reúne as referências arquitetônicas de tez palaciana ou mesmo próprias a um templo e, ainda, o máximo de tecnologia a serviço da música erudita - e, sobretudo, porque lá estive para ouvir os Meninos Cantores de St. Thomas & Orquestra Bach da Gewandhaus Leipzig. Tal coro, por exemplo, existe há quase 800 anos. Essa instituição cultural de Leipzig é a mais antiga dessa cidade, pois é apenas cinquenta anos mais jovem que a própria cidade. E o que nos apresentaram? Uma obra de um compositor do barroco alemão, portanto, do século XVII, e tudo isso acontecia com a naturalidade e a verdade do humano, quando é possível que tal encontro ocorra por meio e através de diferentes tempos em comunhão.

O programa do concerto foi a Missa em si menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Fiquei muito satisfeito por ter levado meus lenços de papel. Eu sabia que eu ia chorar e sabia disso porque eu já estava com vontade de chorar de emoção desde o momento em que sai do trabalho e peguei o táxi em direção à sala de concertos. O taxista boníssimo, quando eu o instruí acerca do destino, disse-me: Ah, você vai assistir a um concerto! Eu respondi: Sim! E não é qualquer um! É uma missa de Bach com um coro de meninos!

Ao dizer isso, eu já intuía e imaginava que a experiência seria transcendente. E foi isso mesmo o se passou.

Tal Missa em si menor é uma tradução de Bach para a missa latina. Fomos informados que Bach compôs algumas partes dessa Missa em si menor, em 1724, mas ele só a concluiu em 1750 (vinte anos depois). Também fomos informados que, embora o compositor fosse Luterano, não devemos estranhar que ele tenha composto com tanto arroubo místico essa missa que, no entanto, se integra na liturgia Católica Romana. Isso porque os luteranos, naqueles tempos, celebravam também missas latinas. Mas, eu, humildemente, penso que ela ganha tal magnitude porque, como também nos informaram no programa, para Bach, toda obra musical era uma consagração a Deus!

E, então, quando o coro dos meninos começou a cantar o Kyrie eleison eu já estava chorando. Uma música sacra nos faz chorar porque, então, temos confirmado o alto poder da nossa própria fé, que, no entanto, somente alguém tão genial poderia expressar na sua forma mais aguda.

Uma particularidade dessa missa muito intensa, a meu ver, deu-se por conta de que além da harmonia absoluta entre instrumentos da orquestra (violinos, violas, violoncelos, contrabaixo, flautas, oboés, fagotes, trompetes, tímpano, cembalo) que, como que emolduravam tão somente as vozes do coro, esse, por sua vez, embora fosse o elemento vocal preponderante, silenciava-se para que, então, as preces fossem entoadas por cantores: como nos duetos de soprano e contralto, Grabriele Hierdeis e Brita Schwarz, respectivamente, que tiveram duas oportunidades para isso, tanto no Gloria quanto no Credo. Foi particularmente comovedora a experiência de ouvir o dueto de soprano e tenor (Gabriele Hierdeis e Hans Joerg Mammel) no Domine Deus, do Gloria. Nesse último, também tivemos algumas árias, soladas, cada qual, pela soprano, pela contralto e pelo baixo (Markus Flaig), respectivamente, o Laudamus te, o Qui sedes ad desteram Patris e Quoniam tu solus sanctus. No Credo, como já disse, voltamos a ouvir um dueto de soprano e contralto, e uma ária do baixo. No final, o tenor cantou a ária Benedictus e a contralto a magnífica ária Agnus Dei que antecedeu a despedida do Coro: Dona nobis pacem. Assim seja!

O coro de meninos, magistral em toda a peça, levou-nos ao êxtase particularmente no Sanctus, (penúltima parte da missa), na minha humilde opinião, isso se deu porque nesse momento, como em vários outros, sentimos uma variação intensa de todas essas vozes do próprio coro, ou seja, os sopranos, os contraltos, tenores e baixos eram a própria litania da fé, como ela deve ser expressa por criaturas que divulgam, nesse nosso tempo, aquela própria fé que Bach vivenciava e que nos impede, necessariamente, se temos o mínimo de sensibilidade, de não crermos, por nossa vez, nessa exaltação da fé como expressão da arte, em segundo grau. Eu diria que isso é só o princípio, pois (como não?) somos conclamados a compreender essa mesma expressão, na verdade, como a expressão última dos anseios humanos.
Sim, confesso, foi isso mesmo o que eu senti, quando me perguntei:
Por que eu não creria que existem os coros dos anjos nos céus, depois de ter ouvido o coro de meninos de St. Thomas cantando uma missa de Bach?

Hoje, 27 de outubro, será a segunda apresentação desses artistas na mesma sala. Um aviso importante, aos interessados em conseguir possíveis ingressos remanescentes: o concerto dura cerca de duas horas, sem intervalo.

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