sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A criança e o chocolate

-Moço, posso te perguntar uma coisa?

- Pode.
- Qual a capital da França?
- Paris.
- Então, compra um chocolate para me deixar feliz.

Esse diálogo ocorreu entre mim e um garotinho com idade em torno dos seus 7, 8 anos de idade, muito muito pequenino, negro, descalço, muito muito sujinho e absolutamente abandonado.
Comprei a barra de chocolate. E, quando eu disse que achei muito inteligente, além de meigo, o recurso por ele utilizado para seduzir seu cliente, ele, continuou:
- Ah, tem outra: Qual é a capital do Brasil?
- Brasília.
- Então, compra um chocolate para eu ajudar minha família.
Aqui cabe um parêntese: eu não estou mentindo, é verdade, ele utilizou, corretamente, o pronome pessoal reto da primeira pessoa do singular (eu), antes do verbo no infinitivo (ajudar), e não o pronome pessoal oblíquo não reflexivo, tônico (mim) que é o que todo mundo faz! Eu, na verdade, não faço mais isso, desde a adolescência, quando um amigo superculto chamou-me a atenção em relação a isso e severamente! rsrsrs
Imediatamente, senti uma empatia absoluta por aquele garotinho. Ele era inteligente, sensível e sabia criar algo difícil entre os seres humanos e que é a cumplicidade. Eu ri. Porque, então, pareceu-me muito claro que eu e ele estávamos falando de algo que D.H. Hymes, num artigo chamado The ethnography of speaking, chama de competência comunicativa e que, para o especialista, é um conhecimento conjugado de normas de gramática e de normas de uso e que regula, sobretudo, a apropriação contextual das condutas.
Sim, estávamos ambos nos apropriando do contexto de nossas condutas. Ele, obedecendo a sua necessidade, seduzia por um jogo de linguagem, ao lançar mão da função da linguagem mais encantadora: a função poética. Ele o fez pelo aproveitamento da rima apropriada, tanto no par Paris/feliz como no par Brasília/família. Eu também apropriei-me da minha conduta de receptor da mensagem, ao deixar-me seduzir. Assim, achei apropriadíssimo, na atividade linguageira ali em funcionamento, rimar Paris com feliz ou Brasília com família, e, sobretudo, isso resultar da conduta de uma criança que, abandonada pelos adultos, optou por ganhar seus trocados usando o recurso de seduzir com palavras aqueles que poderiam ajudá-lo.
Nesse momento, ao menos para mim, a revelação dessa conduta do menino foi o mais importante.
Sim, eu conheço gente que optaria por dizer que isso era um absurdo, ou seja, uma criança estar abandonada, que essa criança deveria estar na escola, que os pais, blá, blá, blá e que, ainda, depois desse discurso todo, não compraria o chocolate, portanto, não deixaria a criança feliz...
Eu, de minha parte, continuo amando as criaturas humanas por essa capacidade de poder seduzir pelas palavras e também por elas permitirem-se ser um pouco mais feliz, em qualquer circunstância, por exemplo, estando abandonada em São Paulo e não em férias em Paris. ;-)

4 comentários:

  1. Com certeza os pais desse pobre garoto não tinham o direito de explorá-lo. Esse menino deveria estar em casa, brincando, praticando algum esporte ou na escola, porém, gostei de sua atitude: fazer alguém feliz, mesmo que por alguns instantes. Parabéns também pelo texto, muito bem articulado e escrito!
    Graciela

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  2. Graciela,

    Obrigado! Eu não disse que eu conhecia quem diria exatamente isso? rsrsrs

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  3. Esse garotinho trabalha ali no farol da USP... ele tem uma companheira de trabalho que faz perguntas sobre a lista de presidentes do Brasil, historicamente organizada! Rapaz, precisa ver, é algo do naipe de Café Filho e coisas assim!
    Veja você que a escola até que acha seu lugar, e com suas marcas mais canônicas, não?

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  4. Lilian,

    Isso de a escola achar seu lugar, e mesmo desse modo, é sempre um mistério agradável, eu diria! Eu, agora, preciso conhecer a garota: são dois fofos, então! ;-)
    bj

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