sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Tesouro do Cinema Nacional


Se hoje alguém me pedisse para fazer uma lista dos dez melhores filmes brasileiros de todos os tempos eu incluiria, sem dúvida alguma, na tal lista, na ordem cronológica, os seguintes filmes:

1.       Limite (1930), de Mário Peixoto,
2.      O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte,
3.      Noite Vazia (1964), de Walter Hugo Khouri,
4.      Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha,
5.      São Paulo S.A. (1965), de Luís Sérgio Person,
6.      Todas as Mulheres do Mundo (1967), de Domingos de Oliveira,
7.      Memória de Helena (1969), de David Neves
8.      Toda Nudez Será Castigada (1973), de Arnaldo Jabor,
9.      O Beijo da Mulher Aranha (1984), de Hector Babenco,
10.  Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz.

Evidentemente, essa é uma lista pessoalíssima! E por isso não consta aqueles filmes que muita gente acha o máximo! rsrsrs Ah, o único pecado dessa lista é o de eu não ter incluído nenhum filme do Nelson Pereira dos Santos, mas é que ele é hors concours, gosto de todos os seus filmes! ;-)

Devo ainda confessar que, até o início dessa semana, minha lista estava incompleta: eu só achava que nove filmes, excetuando os de Nelson, eram os melhores que eu já vira no cinema nacional. É que eu não assistira, até então, ao número 7, o de David Neves, Memória de Helena.

Agora, não falta nenhum! A lista está completa. A não ser que alguém lance, a partir de 2013, um filme obra-prima e eu tenha que retirar algum dos que aí estão para, então, incluí-lo no lugar. Caso contrário, fiquemos com esses mesmos.

Helena (Rosa Maria Penna) 
Memória de Helena não veio apenas salvar minha lista. O fato é que ele me foi apresentado em uma circunstância particular: poucos entenderiam que um filme pode falar e tocar diretamente o expectador, servir inclusive de mensagem premonitória. Esse foi o caso, pois um amigo meu disse que se lembrou desse filme um pouco antes de acontecer com alguém muito próximo a ele o que acontece também com a moça do filme. Mas isso é outra história!

Deixo apenas esse registro, pois creio que essa particularidade tem a ver com o fato de Memória de Helena ser um exemplo daquela filmografia delicada e ao mesmo tempo arrebatadora, e por tais qualidades que lhe são intrínsecas cumpre um papel muito próprio a toda obra de arte que, verdadeiramente, possa assim ser chamada: o de ser uma obra redentora.

Rosa (Adriana Prieto)
Vamos ao filme. Quando o vi, fiquei pensando: não poderia imaginar que já tivemos um filme tão a la Nouvelle Vague na cinematografia nacional! É esse exatamente o caso. Assistindo-o, temos a sensação de que estamos diante de uma sensibilidade muito próxima daqueles filmes feitos pelos diretores franceses pertencentes a essa escola, e que filmavam também no mesmo período em que Neves fez esse seu Memória de Helena. Temos, aliás, informação de que o diretor apreciava muito esse movimento artístico do cinema francês.

Faz parte da história dos bastidores do filme o fato de que Neves contava com pouquíssimo dinheiro e, por isso, as cenas tinham que ser ensaiadas a exaustão para que não se desperdiçasse nenhum rolo de filme. Curiosamente, isso deve ter contribuído para que toda a mise en scène fosse tão cuidadosamente elaborada. Ele nos passa aquela boa impressão de filme construído com esmero. Em filmes assim, os atores se movimentam diante da câmera tão naturalmente, que nos perguntamos: como cada gesto e cada movimento e cada palavra, tudo absolutamente possa ser tão natural e verdadeiro e, a-o-m-e-s-m-o-t-e-m-p-o, faça pleno sentido para o que se pretende contar, seja enfim uma fabulação?

Uma outra emoção: Neves optou por filmar na sua terra natal, Diamantina, em Minas Gerais. Pois a cidade foi o cenário perfeito para uma história tão intimista. Houve lugar para um elogio discreto ao jeito mineiro de ser: logo na primeira cena, Renato (Arduíno Colasanti) questiona Rosa (Adriana Prieto), quando vai buscá-la em casa, acerca do porquê ela teria se arrumado toda se iam apenas "ver uns filminhos", sugerindo que essa atitude era mesmo muito mineira. Também o colégio em que Rosa e Helena (Rosa Maria Penna) estudam, por exemplo, ficou perfeito na tela: com seu pórtico azul, por onde passam por baixo as estudantes em seus uniformes. Até as ruínas do lago artificial que Xica da Silva teria feito – para andar de barco e matar as saudades das viagens marítimas – aparecem equilibradamente apresentadas de modo irônico, sugerindo contradições há muito arraigadas na cultura brasileira.

Renato (Arduíno Colasanti) e Rosa (Adriana Prieto)
Renato e Rosa buscam ver os filminhos que Helena tinha o hábito de fazer e pelos quais nos dá a conhecer seus gatos, as galinhas do quintal, os jardins. Também neles aparecem as velhas tias, a mãe, as empregadas, a própria amiga íntima, os namorados. 

Além disso, o casal devassa o diário da moça. Buscam, assim, compreender sua personalidade, suas atitudes. Tal busca nunca será alcançada completamente, pois Helena  não é pessoa fácil de se entender. Aliás, ninguém que seja depressivo ao extremo pode ser facilmente compreendido, vamos combinar.

Contudo, entende-se que ela é uma pessoa fascinante e seu fascínio se faz por seus silêncios, gestos, por seu modo de ser, é toda inteira e apenas não se compreende a si própria, embora pareça compreender tão bem aos outros, com quem, no entanto, não consegue estabelecer relação que seja de entrega. Ela só se entrega ao obscuro, ao desconhecido, ao seu fundo do poço.

Apesar disso tudo, o filme é um filme solar. A luz é muito cuidada, constituindo uma fotografia magnífica e que tem entre suas assinaturas, a de David Drew Zingg. Toda a equipe concordava em acordar muito cedo para rodar as cenas externas: assim sendo, a luz daquelas manhãs tomam conta da tela; a própria luz radiosa de Rosa, loira e linda; ou de Renato, outro loiro. Toda essa iluminação se contrapõe à beleza da pele morena e dos olhos e cabelos negros de Helena, dela que não se encontra bem em lugar algum: nem na luz mais artificial da capital do Rio de Janeiro, nem na luz natural que banha os quintais de Diamantina.

O figurino, então, daria toda uma análise particular. Sendo um filme de baixo orçamento, as moças devem ter usado as próprias roupas. Mas elas trocam de vestido o tempo todo e um é mais bonito do que o outro. O diretor permitiu que essa troca de roupa fosse também ela um marcador do tempo que passa ou das circunstâncias cotidianas que se repetem. Ora Rosa veste um vestido de Helena, ora Helena está com o mesmo vestido. Em uma cena, o diálogo entre a protagonista e o namorado se inicia quando ela está vestida de uma determinada cor e, quando termina, ela deixa o ambiente vestindo outra e isso não parece ser um erro de continuidade, apenas a marca da repetição de experiências fracassadas no discurso e que se dá em diferentes momentos, algo que, sem dúvida, um depressivo também sentiria com intensidade no seu cotidiano.


O filme é ainda pleno de referências aos clássicos do cinema nacional. Temos referência ao trabalho do pioneiro Humberto Mauro, por quem Neves tinha admiração e que aparece no próprio filme, já velhinho: ele é o tio Mauro (que colaborava nos filminhos P&B de Helena, sua sobrinha). Podemos ver inclusive referências ao próprio Mário Peixoto: nas cenas dos riachos, córregos e lagos, com maior nitidez. Notamos, por fim, a marca de Bressane: há uma cena típica desse diretor e que sempre gostou de filmar as copas das árvores. Ele, aliás, trabalhou como um dos produtores do filme.

Tenho que fazer uma observação relativa à beleza de Rosa: ela é encantadora! Interpretada por Adriana Prieto - atriz que morreu muito jovem, aos 25 anos, mas que passou pelo cinema nacional como um cometa radiante - tal personagem é deliciosa, pois sua atuação é bastante graciosa e faz um contraponto perfeito ao tipo psicológico de Helena, mais sombrio e contido.

O roteiro foi escrito por Paulo Emílio Salles Gomes, a partir do argumento escrito apressadamente por Neves. Paulo Emílio o desenvolve, aprofundando aqui, tornando-o mais leve ali, mas sempre inspirado nos diários de Helena Morney – pseudônimo de Alice Dayrell, diamantinense, filha de ingleses, e que viveu ali no século XIX.

Por tudo isso, eu espero que um dia o Brasil reconheça com mais vigor esse tipo de joia do cinema nacional. Afinal, esse é um filme um tanto esquecido e mesmo desconhecido por muitos de nós. Assim sendo, fiz questão de citá-lo nesse meu blog, que é um acervo da minha memória de observador e, como sempre, espero com isso motivar outras pessoas a que conheçam tal preciosidade.

5 comentários:

  1. junior, o que dizer dos seus cometários sobre tudo que ocorre neste filme. Quanta riquesa de informações. Quantas descrições romáticas, saudosistas do cotitiano que se passa neste filme! Estou fascinada pelas suas observações.Nem é preciso assistir ao filme. Basta ler este seu blog, e deixar-se levar pela imaginação,pelos sonhos e por toda a graça de 'Memória de Helena" Parabéns pelo texto!

    beijos da Tia Betinha

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  2. Tia Betinha linda! Obrigado! Mas ver o filme é muito melhor, eu garanto! Te amo! <3

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  3. Muito bom, Josafá.
    Belas e interessantes reflexões.
    Dois comentários:
    1. Os diários de Helena Morley renderam outro filme muito interessante que é "Vida de Menina", de Helena Solberg. Uma joia rara que pouca gente viu. Conhece?
    2. Sua lista dos melhores é sofisticada e de alto nível. Concordo com (quase) todos os títulos, mas fiquei na dúvida: a ordem dos filmes na lista é aleatória ou pela ordem de importância?
    Parabéns de novo.
    Forte abraço.

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    Respostas
    1. obrigado pela dica querido, não conhecia não: o filme de Solberg.
      Eu fiz uma lista na ordem da data de lançamento. mas amo a todos eles, igualmente. ;)

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  4. Muito interessante a sua defesa de Memória de Helena. Já vi algumas cenas, mas agora fiquei curioso. O cinema brasileiro tem gente muito talentosa.

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