Eu sempre tive a dádiva de em momentos de desalento poder
ler. A literatura sempre me salvou. Quando mais jovem, minhas crises eram mais
constantes e essa espécie de bálsamo que eu encontro até hoje nos textos literários, então, eu tinha mais urgência em sorvê-lo.
Em geral sentimos assim quando há um prazer renovado na
relação que estabelecemos com esses textos que dizem tanto de nós, não dizendo
exatamente nada de concreto acerca de ninguém a não ser, quiça, de seu autor, mas
apenas após a sua experiência ter sido coberta com este véu da abstração com o qual o fazer artístico cobre o que é da ordem do pessoal e indiviso.
Evidentemente, isso acontece mais amiúde - tal componente realmente salvador que toda leitura tem - quando notamos
aquele prazer que surge por ocorrer uma perfeita coincidência de gostos,
sentimentos e princípios e que a obra, ou autor, ou as personagens em questão manifestam.
Estou relendo Jane Eyre, de Charlote Brontë – ganhei o
livro de uma amiga querida no meu aniversário e, embora eu já o lera em inglês, acho que é sempre bom ler também uma boa tradução. Assim sendo, vou reproduzir aqui uma passagem do romance. Nela sinto que aconteceu tudo isso que eu falava mais acima e um pouco mais.
Durante a leitura, passagens assim me comovem porque são parte de mim. No sentido de que a
coincidência é plena daquele gosto a que chamo bom gosto, bem como dos bons
sentimentos e mesmo princípios, sobretudo em relação ao que deve ser exaltado e
louvado na minha opinião e evidentemente também na opinião da própria Brontë, autora da mensagem. ;-)
Enjoy it!
Miss
Temple tinha sempre um ar de serenidade no porte,de nobreza no semblante, de
refinada precisão na linguagem, que impedia o ardor excessivo. Um controlado
senso de reverência que dava prazer aos que a ouviam. Era o que eu sentia
naquele momento. Mas fiquei paralisada de espanto com Helen Burns.
A saborosa
refeição, o fogo brilhante, a beleza e a bondade de nossa amada professora ou,
talvez, mais do que essas coisas juntas, alguma virtude da sua mente única,
despertou-lhe as energias. E essas
energias se agitavam. Primeiro, surgiram na brilhante cor de sua face, que até
agora eu só vira pálida e exangue. Depois brilharam nos seus olhos, que
adquiriram uma beleza ainda mais singular que os de Miss Temple. Uma beleza que
não repousava na cor da pele, nem nos longos cílios, nem nas sobrancelhas, mas
na intenção, no movimento e na vivacidade. Depois foi a alma que pousou nos
lábios e as palavras fluíram, não sei dizer de qual fonte. Como pode uma menina
de quatorze anos ter um coração grande e vigoroso o suficiente para manter a
mais pura, vívida e fervente eloquência? Tal era a característica das palavras
de Helen nessa noite, para mim, memorável. Seu espírito parecia ávido por
viver, num breve espaço de tempo, mais do que muitos vivem durante uma
prolongada existência.
by Paul Chin |
Elas
falaram de coisas que eu nunca ouvira. De povos e eras passadas. De países
distantes. De segredos da natureza, conhecidos ou suspeitados. Falaram de
livros, e quantos elas haviam lido! Quanto conhecimento acumulado possuíam!
Pareciam tão familiarizadas com palavras e autores franceses! Mas o meu espanto
chegou ao máximo quando ouvi Miss Temple perguntar se Helen às vezes dedicava
um tempo a recordar o latim que o pai lhe ensinara. Pegando um livro da estante
pediu-lhe que lesse um trecho de Virgílio, Helen obedeceu, e meu assombro
crescia a cada linha. Mal tinha terminado quando soou o sino anunciando a hora
de dormir. Ali não se admitiam atrasos. Miss Temple abraçou-nos e disse, do
fundo do coração:
- Deus as
abençoe, crianças.
(Charlote
Brontë. Jane Eyre. trad. Doris Goettems. São Paulo: Ed. Landmark, 2010, p. 56-57)
Você é fera!! Sou muito pequenino no meu saber para saber comentar os textos do seu riquíssimo Blog. Só posso deixar aqui, os meus parabéns.! E eu vou continuar lendo tudo o que você posta. Me engrandece.
ResponderExcluirque legal! merci.
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