Houve um tempo em que eu estive desempregado. Posteriormente,
voltei a ser empregado de uma grande empresa. Fui admitido em agosto de
determinado ano e, quando chegou dezembro, a empresa distribuiu cestas de Natal
para seus funcionários, bem como um bônus alimentação, a que carinhosamente os
funcionários chamavam vale-peru (o valor que o cartão do benefício continha equivalia
praticamente ao valor da ave no mercado, talvez um pouco mais).
Na primeira vez em que isso se deu, lembro-me de uma alegria muito
genuína que eu senti quando voltava para casa, carregando a cesta e
entregando-a para minha mãe. O evento demonstrava um marco de recomeço de vida:
a cesta, então, era o pão bendito, o fruto do suor do trabalho. Sim, tudo isso
e um pouco mais.
Depois o tempo passou. Nos anos seguintes, tal cesta natalina virou
um hábito comum dentre as rotinas de final de ano: quase que mais um expediente.
Oh, vergonha dos mortais! Transformam o que é doçura no pranto em mero hábito
na bonança!
Certa feita, a cesta, por algum motivo, mudou, pois a
companhia optou por economizar no orçamento destinado para esse fim: os itens
que vinham dentro dela tiveram sua qualidade alterada, barateada, embora ela não
tenha mudado seu tamanho original. Por conta disso, vários de nós,
funcionários, passamos a reclamar da mudança, portanto, já distantes daquele
espírito de gratidão por estarmos empregados e recebendo os benefícios comuns a
quem vivencia essa condição.
Em tal ocasião, quando saí na rua carregando a cesta, deparei-me
com um morador de rua e, imediatamente, lembrei-me da alegria que eu sentira
quando ganhei aquele mimo pela primeira vez e isso também depois de algum tempo
de penúria. Claro que então lamentei profundamente ter feito parte do coro dos
detratores da cesta. Ao tomar o metrô, vi outros trabalhadores carregando também
suas cestas: a maioria delas era ainda menor que a minha própria!
Tais cestas talvez existam para depurar na gente o caráter: você é
do tipo que agradece por ter recebido um agrado (qualquer um!) ou o desmerece?
Não seriam os ritos do Natal oportunidades para encetar esse tipo de reflexão?
Cada gesto natalino – desde o montar a árvore, comprar o brinquedo para a
criança, ter um presépio – esses pequenos
sinais solicitam da gente pensar em nosso caráter: uma avaliação da nossa
capacidade de agradecer e amar, de sermos mais leves.
Certa feita, li um texto de Cecília Meireles que explicava por que
São Francisco de Assis é o criador da representação tradicional do Presépio, com
Maria e José cuidando do Menino na manjedoura, na companhia daqueles animaizinhos.
Trata-se de uma crônica
publicada originalmente na Revista Rio, em 1946, e que integra o volume 1 da Obra em Prosa da poeta, organizada por
Leodegário A. de Azevedo Filho, para a Editora Nova Fronteira. Intitulada Meditação
no Presépio, reproduzo
aqui tão somente o início e o final da crônica, ambos magistrais:
Quando São Francisco de Assis
inventou o primeiro presépio, e falou das coisas do céu numa gruta, dizem
que, ao ajoelhar-se, desceu-lhe aos braços estendidos um Menino todo de luz. O
Santo Poeta colocara ali apenas umas poucas imagens: as da Sagrada Família, a
do irmão jumento e a do irmão boi. O áspero cenário de pedra tinha a nudez
franca da pobreza, a rispidez dos desertos do mundo, o recorte bravio dos
lugares de sofrimento. Ai, o Menino de luz pode descer, porque ele vinha para
ensinar caminhos difíceis, e restituir às coisas naturais da terra o sentido da
sua presença na ordem universal.
(...)
E se outro São Francisco se ajoelhar
na gruta rústica, o Menino virá todo em luz aos seus braços, porque só o Santo
Poeta entendia dessa irmandade geral do céu e da terra, e da graça de todos os
despojamentos, e da alegria de não precisar ter, pela contemplação de todos os
enganos, e da leveza da vida em expressão absoluta.
...a que carinhosamente os funcionários chamavam vale-peru... Foi ótima!
ResponderExcluirGosto de suas crônicas.
kkkk obrigado querida!
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