quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Da alegria de não precisar ter, pela contemplação de todos os enganos


Houve um tempo em que eu estive desempregado. Posteriormente, voltei a ser empregado de uma grande empresa. Fui admitido em agosto de determinado ano e, quando chegou dezembro, a empresa distribuiu cestas de Natal para seus funcionários, bem como um bônus alimentação, a que carinhosamente os funcionários chamavam vale-peru (o valor que o cartão do benefício continha equivalia praticamente ao valor da ave no mercado, talvez um pouco mais).

Na primeira vez em que isso se deu, lembro-me de uma alegria muito genuína que eu senti quando voltava para casa, carregando a cesta e entregando-a para minha mãe. O evento demonstrava um marco de recomeço de vida: a cesta, então, era o pão bendito, o fruto do suor do trabalho. Sim, tudo isso e um pouco mais.

Depois o tempo passou. Nos anos seguintes, tal cesta natalina virou um hábito comum dentre as rotinas de final de ano: quase que mais um expediente. Oh, vergonha dos mortais! Transformam o que é doçura no pranto em mero hábito na bonança!

Certa feita, a cesta, por algum motivo, mudou, pois a companhia optou por economizar no orçamento destinado para esse fim: os itens que vinham dentro dela tiveram sua qualidade alterada, barateada, embora ela não tenha mudado seu tamanho original. Por conta disso, vários de nós, funcionários, passamos a reclamar da mudança, portanto, já distantes daquele espírito de gratidão por estarmos empregados e recebendo os benefícios comuns a quem  vivencia essa condição.

Em tal ocasião, quando saí na rua carregando a cesta, deparei-me com um morador de rua e, imediatamente, lembrei-me da alegria que eu sentira quando ganhei aquele mimo pela primeira vez e isso também depois de algum tempo de penúria. Claro que então lamentei profundamente ter feito parte do coro dos detratores da cesta. Ao tomar o metrô, vi outros trabalhadores carregando também suas cestas: a maioria delas era ainda menor que a minha própria!

Tais cestas talvez existam para depurar na gente o caráter: você é do tipo que agradece por ter recebido um agrado (qualquer um!) ou o desmerece? Não seriam os ritos do Natal oportunidades para encetar esse tipo de reflexão? Cada gesto natalino – desde o montar a árvore, comprar o brinquedo para a criança, ter um presépio –  esses pequenos sinais solicitam da gente pensar em nosso caráter: uma avaliação da nossa capacidade de agradecer e amar, de sermos mais leves.

Certa feita, li um texto de Cecília Meireles que explicava por que São Francisco de Assis é o criador da representação tradicional do Presépio, com Maria e José cuidando do Menino na manjedoura, na companhia daqueles animaizinhos.

Trata-se de uma crônica publicada originalmente na Revista Rio, em 1946, e que integra o volume 1 da Obra em Prosa da poeta, organizada por Leodegário A. de Azevedo Filho, para a Editora Nova Fronteira. Intitulada Meditação no Presépio, reproduzo aqui tão somente o início e o final da crônica, ambos magistrais:

Quando São Francisco de Assis inventou o primeiro presépio, e falou das coisas do céu numa gruta, dizem que, ao ajoelhar-se, desceu-lhe aos braços estendidos um Menino todo de luz. O Santo Poeta colocara ali apenas umas poucas imagens: as da Sagrada Família, a do irmão jumento e a do irmão boi. O áspero cenário de pedra tinha a nudez franca da pobreza, a rispidez dos desertos do mundo, o recorte bravio dos lugares de sofrimento. Ai, o Menino de luz pode descer, porque ele vinha para ensinar caminhos difíceis, e restituir às coisas naturais da terra o sentido da sua presença na ordem universal.

(...)

E se outro São Francisco se ajoelhar na gruta rústica, o Menino virá todo em luz aos seus braços, porque só o Santo Poeta entendia dessa irmandade geral do céu e da terra, e da graça de todos os despojamentos, e da alegria de não precisar ter, pela contemplação de todos os enganos, e da leveza da vida em expressão absoluta.



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