Esta manhã, no trem, vindo para o trabalho, eu comecei a
leitura de um romance de A. B. Yehoshua: Fogo
Amigo.
No primeiro e segundo capítulos, encontramos as personagens
principais sendo apresentadas: o casal Yaári e Daniela. Ele está se despedindo
da esposa no aeroporto, pois ela vai visitar o cunhado Yirmiyáhu, que ficou
viúvo há apenas um ano. Daniela quer ir só, mas no primeiro capítulo ainda não
saberemos exatamente o porquê. Já o marido está apreensivo por ela viajar sozinha. Haverá uma
conexão no voo e ele explica-lhe que não quer que ela saia do aeroporto: “Daniela querida, lá é
a África, não a Europa. Nada por lá é muito claro nem muito estável. E se você
for à cidade poderá perder a hora ou se perder pelo caminho.”
Ela, claro, acha tudo exagerado. Ao que ele responde: “Só
porque o meu amor por você é exagerado.” Então, ela lhe diz: “Quanto tem aí de
amor e quanto de controle é algo que vamos ter de esclarecer um dia.”
Somos informados pelo narrador que o marido está preocupado
devido ao fato de ela já ter quase 60 anos, sofrer de pressão alta e,
sobretudo, porque nunca viajara sem sua companhia. Depois, ele vai para o
trabalho e acompanhamos um pouco de sua rotina.
No segundo capítulo, encontramos Daniela em um free shop do
aeroporto, distraída com a vendedora de batons, quando será conduzida pelo
comissário de bordo até o avião. Quando ela ocupa o lugar que lhe pertence, ficamos
sabendo o motivo íntimo dessa viajem:
“(...) ela está à procura de palavras precisas, e fatos
olvidados ou talvez novos, que avivem a dor e o luto pela irmã mais velha, que
ao morrer levou consigo parte da infância da irmã caçula. Sim, ela sente agora
o desejo bem nítido de avivar o sentimento de perda e fender a casca de
esquecimento que começou a envolvê-la. É esse o motivo pelo qual almeja passar
alguns dias perto de alguém que ela conhece desde a infância, e cujo amor e
lealdade para com a irmã nada ficavam a dever aos dela mesma.”
Quando, no início do terceiro capítulo, o cunhado fica sabendo,
por meio do telefonema do marido, que Daniela está indo só ao seu encontro,
admira-se, não porque acredite que ela não possa viajar sozinha:
“É claro que ela consegue, gracejou de Dar es Salaam a voz
querida e familiar, e se for por apenas sete dias e não mais, ela vai resistir
muito bem aqui sem você. Mas será que você
vai aguentar? Vai mesmo aceitar a separação sem se arrepender na última hora e
se juntar a ela?”
Nesse momento da minha leitura, a apresentadora do programa
Manhã Cultura, da rádio Cultura FM, anunciou-me pelo fone de ouvido: “Agora,
ouviremos La donna è mobile (A
mulher é voluvel), ária do terceiro ato da ópera Rigoletto, criada por Giuseppe
Verdi. Gravação da interpretação do tenor que realizou a primeira performance
dessa ária, em 1951: Raffaele Mirate.”
La Donna è móbile
Qual piuma al vento,
muta d'accento e di pensiero.
Sempre un amabile,
leggiadro viso,
in pianto o in riso, è menzognero.
La donna è mobil'.
Qual piuma al vento,
muta d'accento e di pensier!
e di pensier'!
e di pensier'!
È sempre misero
chi a lei s'affida,
chi le confida mal cauto il cuore!
Pur mai non sentesi
felice appieno
chi su quel seno non liba amore!
La donna è mobil'
Qual piuma al vento,
muta d'accento e di pensier!
e di pensier'!
e di pensier'!
Não sei se porque eu já estava imbuído dessa história de uma
relação em que temos um homem tão frágil diante de seu amor por uma mulher, fiquei
deveras emocionado com essa ária que, no entanto, já ouvira tantas vezes, e que é
tão singela e mesmo popular!