quarta-feira, 4 de julho de 2012

Ensemble Intercontemporain e Marthe Keller: uma visão de Cassandre!


Ensemble Intercontemporain

No dia 02, segunda-feira, fui até a Sala São Paulo conhecer o Ensemble Intercontemporain. Trata-se de um grupo composto de 31 musicistas que têm paixão pela música do século XX e XXI e, assim sendo, a divulgam nas principais salas de concerto do mundo. O Ensemble é sediado na Cité de la Musique, em Paris, e tem um intenso trabalho de pesquisa e de fomento da produção e difusão da música contemporânea, além de promover a formação e educação musical de jovens instrumentistas, bem como de seu público.

A oportunidade de ouvir um grupo de tanto prestígio e que divulga um repertório muito distante do lugar comum foi uma experiência que achei consoladora em mais de um sentido. Afinal, como é bom saber que há pessoas trabalhando com o suprassumo da composição musical e que nos possibilitam, então, uma experiência de audição muito mais próxima do nosso próprio tempo em uma espécie de atualização da tradição de concertos. Evidentemente, o repertório apresentado também tinha muito de atemporal, e isso desde a primeira peça, La Barque Mystique, de Tristan Murail (1947). Nela, senti-me como fosse tripulante da tal barca que na minha sensação navegava não em águas líquidas mas numa espécie de bruma espessa.

Marthe Keller
Também devido ao programa da noite, tínhamos ainda um motivo a mais para entender tal concerto como um acontecimento particularmente especial, é que acompanhava o grupo e seu regente, Jean Deroyer, a atriz suíça Marthe Keller, que faria a protagonista da obra de Michael Jarrel, Cassandre: o monodrama escrito em 1993-94, especialmente para a atriz. Trata-se, segundo seu compositor, de peça escrita para “comediante e conjunto instrumental e eletrônico”. Foi uma honra ouvir Keller o declamando.

Além disso, foi também muito impactante ouvir tal narrativa em primeira pessoa. Nela, uma mulher solitária expõe seu drama. Cassandra, na mitologia, foi a bela filha de Príamo e Hécuba, reis de Troia e que recebeu do apaixonado deus Apolo o dom da profecia. Como ela se negou a corresponder ao amor do deus, Apolo decidiu que seu dom seria inútil e, então, embora ela profetizasse, ninguém lhe dava crédito.

A peça de Jarrel foi inspirada na versão radiofônica que Gerhard Wolf que a adaptara da novela escrita por sua esposa, a escritora alemã Christa Wolf. Então, encontramos Cassandra no momento em que ela é prisioneira de Agamenon e tem poucas horas de vida. Cassandra nos conta em desespero tudo o que ocorreu na guerra que ela previra e que ninguém foi capaz de evitar, ou seja, no momento após ter testemunhado a morte dos pais e a derrota da cidade.

O musicólogo e crítico musical Philippe Albèra, citado no programa do concerto, analisa que “a música de Michael Jarrel situa-se naquele limiar que separa a profundidade do passado do abismo do futuro. Essa música incerta e vibrante oscila entre o dito e o não dito, entre o sono e a vigília; dela emergem vozes solitárias e fantasmagóricas. (...) Oblívio e retrospecção em Cassandre refletem-se, pois, numa música que entretece misteriosamente os fios do novo e do velho.”

Pois bem, uma experiência como a de ouvir tal peça pode ser transformadora se assim o quisermos. Afinal, por ela vivenciamos a emoção de conhecermos artistas tão talentosos e ainda encenando uma peça tão bem escrita e urdida por seus autores, mas também aprendemos que, desde tempos imemoriais, os místicos como Cassandra são desacreditados. Porém, tal experiência trágica renova-se em mais de um grau, a cada dia, em meio à humanidade que se por um lado é sofrida, por outro, é também bastante feroz. Mon Dieu!

     Cassandra and her Trojan by Jann Barry

Nenhum comentário:

Postar um comentário