Outro dia eu falei por aqui que eu descobrira muito
recentemente que Mary Westmacott e Agatha Christie são a mesma pessoa. É que eu lera, então, Filha é filha. Pois
bem, agora li Ausência na primavera, romance acerca do qual a própria autora
teria dito: O livro que eu sempre quis escrever.
Eu penso que ela estava coberta de razão por ter desejado escrever esse livro no
qual acompanhamos uma dona de casa inglesa, bem provinciana, mas que ao voltar de
Bagdá, onde fora visitar uma filha casada, encontra-se tendo que aguardar uma
conexão de um trem, no meio do deserto, para que possa voltar à sua cidadezinha
inglesa.
Embora essa pobre mulher tenha todos os defeitos comuns às mães e esposas que se acham muito dedicadas e corretas e ela ainda tenha os defeitos comuns àquelas que são perfeitamente inglesas, o fato é que, ao se deparar consigo mesma, no meio desse deserto, ela só pôde encontrar, como, aliás, aconteceria com qualquer outro cristão, seus próprios
fantasmas.
E, então, como é rica e emocionante a experiência do exame de consciência que Agatha Christie descreve! Vamos combinar, que tal exame é sempre bonito quando autêntico e, diga-se de passagem, não é possível fugir dele a certa altura: para todo mundo em algum momento ele ocorrerá! Contudo, a oportunidade para que
isso aconteça na vida de cada um é sempre misteriosa. Por que comigo? É a primeira pergunta que fazemos. Para em seguida nos perguntarmos também: Por que agora e não antes? Por que, por que, por quê?
Trata-se também de um livro do qual não é possível fazer uma
sinopse, pois como sintetizar toda uma vida que se conta em flashbacks, após
uma epifania no meio do deserto!?
Para suscitar o interesse de vocês, vou apenas transcrever um
trecho formidável e que se dá quando Joan, a protagonista, finalmente está voltando para
casa e em companhia de sua companheira de cabine e que é uma aristocrata ótima! Na ocasião, elas têm esse diálogo:
- É verdade eu passei por uma experiência bastante
perturbadora.
-Ach, é mesmo? O que foi? Um homem?
-Não, certamente não.
-Que bom. É tão comum ser um homem, e realmente no fim fica
um pouco chato.
-Eu estava sozinha na pousada em Tell Abu Hami, um lugar
horrível, cheio de moscas, latas e rolos de arame farpado, e muito sombrio e
escuro no interior.
- Isso é necessário por causa do calor no verão, mas eu sei
o que você quer dizer.
-Eu não tinha ninguém para conversar e logo em seguida terminei
os livros e... e fiquei... de um jeito muito estranho.
- Sim, sim, isso poderia muito bem ocorrer. É interessante a
sua história. Continue.
- Comecei a descobrir coisas a meu respeito. Coisas que
nunca percebi antes. Ou melhor, coisas que sabia, mas nunca quis reconhecer. Não
consigo explicar a você.
- Oh mas você consegue. É bem fácil. Eu vou compreender.
O interesse de Sasha era tão natural, tão despretensioso,
que Joan se viu falando com impressionante falta de restrições. Já que falar
sobre seus sentimentos e relações pessoais era tão natural para Sasha, começou a
parecer natural para Joan.
Ela começou a falar com menos hesitação, a descrever seu desconforto,
seus temores, e seu pânico final.
- Atrevo-me a dizer que isso parecerá absurdo, mas achei que
estava perdida por completo, sozinha, que até mesmo Deus me havia abandonado.
- Sim, todos sentem isso em algum momento. Eu própria já me
senti assim. É muito sombrio, muito terrível.
Não é maravilhoso que todo mundo possa se sentir assim, em algum momento, e
que cada um de nós tenha que se resolver consigo mesmo? Podemos verificar que isso acontece, na verdade, em uma tradição de relatos e que remonta, só para ficar na modernidade ocidental, desde o que nos conta Dante Alighieri até, por que não?, esse de Mary Westmacott.
;-)
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