No último sábado, participei de uma sessão de cineclube com
amigos. Somos quatro cinéfilos
que decidimos fazer uma programação para todo o ano, extensa e de alto nível, e que desejamos possa preencher os vazios que ainda existem na nossa cultura
cinematográfica.
Um desses vazios era o de ainda não termos visto (ao menos três de nós) o filme Infâmia (The Children’s Hour) de William Wyler. Lançado em 1961, ele tem seu roteiro baseado em peça teatral de Lillian Hellman. Aliás, foi a própria dramaturga
quem escreveu tal roteiro. Hellman é uma intelectual norte-americana de grande importância
na história e cultura de seu país, inclusive porque, juntamente com o marido Dashiell Hammett e outros intelectuais, chegou a combater o nazismo. Além disso, foi perseguida pelo Macarthismo.
Ou seja, ela só pode ser considerada gente muito boa!
The Children's Hour
foi seu primeiro trabalho para o teatro, tendo sua estreia na Broadway, em
1934. A peça conta a história de duas professoras de uma escola para meninas
que são acusadas de viverem uma relação homossexual e, mesmo que isso
nunca seja efetivamente provado por aqueles que veem nisso um crime, a partir de então, ambas têm suas vidas dilaceradas.
A obra fez um imenso sucesso na Broadway, mas foi proibida fora de Nova York, em
outras cidades importantes como Boston, Chicago e Londres.
Sabemos que mesmo tendo ido para as telas nessa versão, 25
anos depois, o texto e a organização estrutural da peça resultaram em um filme ainda
ousadíssimo para os anos 60, sobretudo, por tratar dessa temática nada
convencional em Hollywood. Por exemplo, já houvera uma primeira versão
cinematográfica da obra, rodada em 1936, na qual trouxeram à cena um triângulo heterossexual, no lugar de tratar da temática do lesbianismo com a mesma naturalidade que se observa na peça e que declaradamente é a que está em jogo na história original. Outra riqueza
do filme: ele é estrelado por duas grandes atrizes nos papéis das
protagonistas, ou seja, Audrey Hepburn , como a professora Karen Wright e Shirley
MacLaine como sua parceira Martha Dobie.
Quando conhecemos a escola onde trabalham as duas jovens e a tia de Dobie, Lily Mortar (Miriam Hopkins), uma espécie
de atriz decadente, notamos que se trata de uma escola para meninas ricas da
Nova Inglaterra. Nas cenas iniciais, cresce em vulto uma aluna em especial, Mary
Tilford (Karen Balkin), garota que antes de ir para a escola vivia com a avó, Amelia Tilford
(Fay Bainter), uma espécie de matriarca importante na cidade. Sua neta é mimada, birrenta, tornando-se profundamente
desagradável em sua conduta e em seus excessos. Ela faz isso tudo tão somente para
conseguir o que mais deseja: abandonar a escola.
A professora Karen (Hepburn) é noiva de um médico, Dr. Joe Cardin (James Garner), sobrinho da avó da garotinha. Desde o início, é verdade, a amiga demonstra ter muito ciúmes do charmoso casal. E, então, somos surpreendidos com uma trama
em que aos poucos lamentamos profundamente a sordidez da criança, a
complacência criminosa da avó, o sofrimento profundo das moças e consequentemente também o do rapaz,
atacados e vilipendiados como todos eles são. Mas, como em toda obra de dramaturgia boa
demais, é no final, apenas no final, que as coisas começam a se esclarecer, quando o deslindar da situação revela o que pode ser ainda mais aterrador.
A fotografia belíssima de Infâmia é assinada por um veterano de Hollywood,
o fotógrafo Franz Planer (1894–1963), nascido na atual Karlovy Vary, na República
Checa. Como muita gente europeia de sua geração, ele foi fortemente influenciado
pelo expressionismo alemão, ao utilizar a técnica do chiaroscuro, pela qual proporciona uma iluminação em que é gritante o contraste entre luz e sombra para atingir os
requisitos solicitados pela temática em questão. Ele assim o fez especialmente para
os filmes noir em que trabalhou como, por exemplo, Baixeza (1949) e Sindicato do Crime (1950). Sua rica
carreira sedimentou a força do domínio de sua técnica, o que faz todo o diferencial nesse trabalho. Por ele, se consolida com maestria a elaboração pela imagem de toda uma atmosfera opressiva
que vai se fechando em torno das personagens, durante o desenvolvimento da
história.
Por outro lado, desconfio que, sobretudo para quem já viveu
na própria pele o que é ser insultado por ser homossexual (mas também poderia
ser o insultado por pertencer a qualquer outra “minoria”), é demasiado
comovente ver a subjetividade das personagens sendo assumida pouco a pouco, mas
com consequências dolorosas para cada qual e, após o trágico desfecho a que
assistimos na tela, observar a personagem de Audrey Hepburn, por fim, sair
altiva diante dos difamadores, mas tão somente porque só lhe restara aquela
dignidade que se propaga nobre e serenamente, característica daqueles que a
alcançam depois de escalarem o abismo do sofrimento mais autêntico.
Crítica genial!!!!!!!! (Paula Cunha)
ResponderExcluirObrigado Paulinha linda!
ResponderExcluirOlá Josafá, ótima crítca!!! Estou buscando o texto da peça Infâmia e nao consegui em nenhum banco de textos. Vc tem alguma ideia de onde posso conseguir?
ResponderExcluirObrigada