quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Que ventura quando somos polidos!


Henri Bergson
Foi inevitável ouvir minha mãe, que é uma senhora de 75 anos de idade, conversando ao telefone com uma amiga. Então, mamãe dizia a certa altura:
- É, às vezes, a gente dá uma de ignorante...
Imediatamente, eu pensei:
- No seu caso só se for puro fingimento mesmo! kkkk 
Acredito que, muito provavelmente, ela estava apenas querendo concordar com a tal amiga, que, por sua vez, devia estar contando que, enfim, fora grosseira em alguma ocasião.
A verdade é que minha mãe é completamente o oposto do que seria uma pessoa "ignorante", ou seja, no sentido de ser alguém que teria atitudes grosseiras ou que se comportaria de maneira mal educada, com impolidez.

Por falar em seu oposto, tal incidente - eu ouvir a tal conversa - fez com que eu me lembrasse que emprestara um livro de uma amiga e que trata dessa virtude que é a polidez [há quem pense que não é bem uma virtude, mas...]. Lembrei-me também que já passou da hora de eu devolver o livro. Então, eu o retirei da estante para deixá-lo mais próximo de mim e, assim, não me esquecer de devolvê-lo à dona.

Ao fazê-lo, no entanto, não pude resistir a abrir o tal livro que é uma coletânea. Por um acaso o abri em um texto de Henri Bergson chamado Da Polidez.

É tão lindo o que ele diz que vou compartilhar uns excertos com todos vocês:

O homem do mundo ideal sabe falar às pessoas sobre aquilo que as interessa; olha do ponto de vista do outro sem por isso adotá-lo sempre; entende tudo sem por isso tudo desculpar. O que nos agrada nele é a facilidade com a qual circula entre os sentimentos e as idéias; talvez também a sua arte, quando nos fala, de nos fazer pensar que não seria o mesmo com todas as pessoas; pois é peculiar a esse homem extremamente polido preferir cada um de seus amigos aos outros, e conseguir mesmo assim amar a todos igualmente. Logo, um juiz demasiado severo poderia colocar em dúvida sua sinceridade e sua franqueza. Não se deixem enganar contudo; sempre haverá entre essa polidez refinada e a hipocrisia obsequiosa a mesma distância que há entre o desejo de servir as pessoas e a arte de se servir delas.
(...)
Parece, portanto, que a polidez sob todas as suas formas, polidez do espírito, polidez das maneiras e polidez do coração, nos introduz numa república ideal, verdadeira cidade dos espíritos, onde a liberdade seria a libertação das inteligências, a igualdade uma divisão equitativa da consideração e a fraternidade uma delicada simpatia pelos sofrimentos da sensibilidade. Seria o prolongamento da justiça e da caridade além do mundo tangível; acrescentaria à vida de todos os dias, em que relações úteis se estabelecem entre os homens, o charme sutil de uma obra de arte. A polidez assim concebida reclama o concurso do espírito e do coração; ou seja, ela é pouco ensinada; mas se alguma coisa a predispusesse ao ensino, seriam os estudos desinteressados, e principalmente os que vocês fazem aqui, jovens estudantes, os estudos clássicos. 
(...)
TIZIANO Vecellio
Man with a Glove (1520-22)
Sem ir tão longe, não se poderia dizer que a melhor preparação para essa polidez do espírito é ainda a leitura dos autores antigos? Os antigos devotaram às ideias um amor mais puro do que o nosso, pois eles as amavam por elas próprias, ao passo que nós as amamos por aquilo que elas nos dão. A ideia é para nós sobretudo um princípio de ação; era objeto de contemplação para os antigos. Lembrem-se de algumas páginas dos diálogos de Platão, e da deliciosa inutilidade daquelas conversações em que Sócrates e seus discípulos pareciam menos preocupados em afirmar seus pensamentos do que em fazer deles um espetáculo, e mesmo brincar com eles. Temos pressa em atingir nossos objetivo, e nossa caça às ideias parece uma corrida; para os antigos era um passeio, e demoravam-se de bom grado ao longo do caminho porque achavam-no belo. Enfim, se nossa moral é mais profunda do que a moral antiga, se nossa justiça é mais rigorosa e nossa caridade mais generosa, se compreendemos melhor o que faz a seriedade, a gravidade e, para resumir, a importância da vida, os antigos perceberam melhor seu encanto. Foi amando a vida que se tornaram amáveis, e a amavam porque sabiam descobrir nela a beleza, e, como diria Platão, resolver as questões em ideias. Sigamos seu exemplo, e se não dispomos mais das mesmas possibilidades para nos entregarmos à contemplação do belo, aprendamos ao menos, na sua escola, a polidez do espírito e a arte de considerar a vida amável (...).

[BERGSON, Henri, Da Polidez In: A polidez: virtude das aparências, organização de Régine Dhoquois, tradução de Moacyr Gomes Jr. Porto Alegre: L&PM, 1993.]

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Elly Mackay

A artista canadense Elly Mackay é quem assina essas ilustrações belíssimas feitas a partir de recortes de papel. Primeiramente, ela desenha suas personagens em um papel especial chamado "Yupo" - um papel plástico,  resistente, que não deixa vincos, aceita tinta e capta a luz com perfeição. Em seguida, ela põe as figuras em um pequeno palco, seu teatro (Cloud Theatre), que é vazado em todos as direções, o que permite que o conjunto receba luz a partir de diferentes ângulos. Então, ela cria efeitos para o céu e as diferentes paisagens, que são construídos em papel de seda. 
Após a montagem de todo esse conjunto, ela os fixa com a ajuda de arames para, por fim,  fotografar a cena de sua criação.
Há algo de mágico, evidentemente, nesse trabalho, pois remete a um universo de inocência  admirável!
Veja o que ela mesma já andou dizendo about it

"Meu trabalho muitas vezes fala de um instante em uma narrativa, e, muitas vezes, brinca com os temas da infância e do efêmero. Eu olho para minha própria infância, as minhas experiências como mãe, curiosidades vitorianas, ilustrações de livros antigos, cenografia, minha terra e clima daqui. Às vezes, eu trabalho em uma escala maior, criando instalações. No futuro espero fazer alguma animação também."

Não é uma linda? Enjoy it!













sábado, 15 de setembro de 2012

Biblioteca cura a dor d'alma


Quando eu era adolescente, durante um tempo, eu fui muito à Biblioteca Mário de Andrade, porque,  então, o teatro municipal estava passando por reformas e um programa de divulgação da música lírica intitulado Vesperais Líricas havia, provisoriamente, se transferido para o auditório da biblioteca. Ali tinha sido instalado um piano e, em torno dele, cantores líricos cantavam árias de óperas diversas, as mais famosas.
Portanto, eu ia à biblioteca municipal não para ler, mas para ouvir música.
Depois, já estudando na universidade, fui a essa biblioteca diversas vezes para pesquisar, mas, então, estávamos na década de 90 e ela sofria abandono e descaso. O prédio sempre foi lindo, contudo, se deteriorava frente à inação do poder público municipal naquela gestão, que, como em tantas outras, não dava atenção ao problemas do universo da cultura de um modo geral.
Na década seguinte, eu não a frequentei, mas imagino que a coisa deve mesmo ter chegado a um tal ponto de descaso, que a administração, que por fim a reformou, foi obrigada a fazê-lo. E, ainda bem que o fizeram: a Mário de Andrade está linda! A reforma alterou para melhor todas as instalações, respeitando o patrimônio arquitetônico: ficou muito parecido com o que fizeram também com a Pinacoteca.
Como estou de férias do trabalho, pude essa semana ir ali e usufruir dessas novas instalações.
Fiquei tão emocionado!
Como todo mundo, acho absolutamente fundamental que o patrimônio público seja conservado, atualizado, e sirva à comunidade. Pois bem, é isso o que está acontecendo com a nossa biblioteca, a mais querida do pedaço. Foi bacana também observar as pessoas com seus laptops nas mesinhas, as tomadas estarem à disposição e, claro, no setor de circulação todos livros ao alcance da mão... E também ver a biblioteca cheia de gente jovem, estudando como sempre.
Aliás, acho comovente ver gerações de estudantes que se renovam. Paramos pouco para pensar nisso. Por exemplo, no fato de que eu, quando adolescente, estive ali, mas agora os adolescentes são outros e que a casa que abriga todas essas gerações em torno do conhecimento é a mesma. De cara nova, graças!, mas a própria casa idealizada pelo grande escritor cuja figura é homenageada no nome que a biblioteca ostenta em sua fachada.
Agora, preciso dizer o mais importante: quando eu estive na biblioteca, fui ali em busca de lenitivo para uma espécie de tristeza que queria se instalar em meu espírito... Sim! Mas não deixei  isso acontecer e foi a biblioteca que me ajudou nesse intento. Lendo um livro durante umas três horas tanta coisa aprendi! E, o mais importante, o espaço para a amargura não se fez na minh'alma. É que tal espaço foi logo ocupado pela matéria de que o livro tratava: era um compêndio de artigos sobre educação, como poderia ter sido as histórias de Sherlock Holmes, não importa. O livro e a biblioteca cumpriram seu papel, como sempre cumprirão.

Isso aconteceu anteontem. Ontem, fui visitar uma dentista para ter uma consulta.
Quando eu sentei na cadeira e de boca aberta, esperava que ela me dissesse coisas horríveis sobre a minha saúde bucal. Às vezes, vamos ao médico não esperando a cura, mas apenas a confirmação do mal.
Vejam como somos tolos! A cirurgiã dentista, ao contrário, disse-me que todos os problemas que encontrou seriam solucionados e que para tudo tinha jeito (se fosse minha mãe já emendaria: só não tem jeito para a morte! kkkk)
E eu fiquei tão feliz!
Para celebrar essa alegria, postei no facebook:

Quero muito agradecer a Deus e a uma amiga queridíssima [que não frequenta o facebook] uma felicidade que pude sentir hoje. 
Tenho certeza que a amizade é coisa divina! ♥

Renovo aqui o mesmo sentimento e meu desejo sincero de que mais gente possa conhecer essas alegrias que aqui descrevi e que são todas feitas de renovação.


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O que vejo em Caravaggio



Se vc ainda não foi, definitivamente, deve ir.
A exposição Michelangelo Merisi, dito Caravaggio Caravaggio e seus seguidores continua lá no Masp.
Ontem, quinta-feira, eu fui. 
Por sinal, achei tranquilíssimo o movimento dos visitantes: não peguei nenhuma fila.

Im-pres-si-o-nan-te as obras expostas.

Na verdade, eu vivia esta visita à exposição por antecipação.
Tratava-se de um Acontecimento, afinal, eu desejava desde há muito estar diante de um original do pintor. 
E quando finalmente fiquei em frente ao quadro São Jerônimo que escreve ou diante do São Francisco em meditação ou do São João Batista que alimenta o cordeiro, a emoção tomou-me em ondas, embora muito brandas. O que percebi, então, é que Caravaggio provoca uma compreensão muito profunda da condição mística da humanidade.
Ao mesmo tempo eu pensava: Como é simples! Apenas um gênio pode tocar tão fundo e com tanta simplicidade: sombra e luz. 
Os halos nas cabeças são uma sugestão delicada da representação do elo de tais personagens santas com a espiritualidade, seja na reflexão mística de um São Jerônimo diante da morte (sim, ali parece que morrer não é um problema), seja também na meditação de São Francisco diante da mesma morte, aqui apontando o amor pela alta transcendência  na proposição da personagem, ou mesmo na melancólica introspecção de um São João Batista.
Nesse caso especificamente, a representação é ainda mais tocante pois enquanto a tradição bíblica  nos apresenta um santo eloquente e bravio, Caravaggio o apresenta jovem e em isolamento, vivendo uma experiência íntima de melancolia, de introspecção, o que é absolutamente comovedor em sua beleza.

Eu senti que provavelmente a personalidade de Caravaggio, o homem e não o pintor, mesmo tendo um temperamento explosivo, sendo o encrenqueiro contumaz que era e tendo se envolvido em uma série de brigas e processos jurídicos ao longo de toda sua vida - sendo obrigado por isso mesmo a fugir de diversas cidades e, por fim, de Roma, onde já fora condenado -, mesmo com tudo isso, ele talvez sofresse ainda de uma radical inocência, pois apenas alguém que compreendesse os meandros da inocência e/ou ingenuidade poderia representar tais estados de alma, tais como se apresentam na angelical figura central do quadro Os Trapaceiros, cuja cópia feita por um Anônimo também vemos no Masp, uma vez que um original da obra está no Kimbell Art Museum, de Fort Worth, Texas, e outro original no Ashmolean Museum of Oxford

Talvez por isso tudo é que ele necessitava de um escudo/amuleto como a Medusa Murtola. ;-)

O que dizer dos tais caravaggescos? Bem, embora cada um deles utilize o chiaroscuro de uma maneira realmente singular, percebe-se que ficam tão menores ali naquela circunstância em que é inevitável o cotejo com a obra de um verdadeiro gênio... Ainda assim, agradou-me conhecê-los, evidentemente, sobretudo o espanhol Jusepe de Ribera e o seu São Tiago Adulto, tal figura humana é de fato monumental, bem como Bartolomeo Cavarozzi, natural de Viterbo, na Itália, e sua obra Virgem com Menino, uma vez que há uma suavidade nessa madona muito bela de se apreciar.

Eu espero que você, se estiver em São Paulo, não deixa de apreciar a exposição e ver o que só você poderá ver em Caravaggio.