Um amigo jornalista, a quem admiro muitíssimo, perguntou-me outro dia se eu já lera
Mark Twain,
As aventuras de Huckleberry Finn (1885). Eu fiquei desconcertado. Sempre fico quando falam em um clássico que eu ainda não li...rsrsrs
A verdade é que teríamos que viver, no mínimo, duzentos anos para conhecer todos os que desejamos, aqueles que de verdade vale a pena conhecer, no universo da literatura. Estou concluindo isso, porque quanto mais vivo, e vivo lendo, mais vejo que ainda falta tanto para eu conhecer!
Que maravilha essa infinitude que a literatura representa, não apenas em quantidade, mas na qualidade de cada um desses livros incríveis. No aprendizado que nos proporcionam, na sabedoria que encerram!
Então, fui até a livraria cultura e comprei meu exemplar da coleção de bolso da L&PM. Que livro bem traduzido! A isso devemos agradecer
Rosaura Eichenberg. O livro é dificílimo de se traduzir, porque o autor registrou toda a linguagem muito comum na sua época entre os negros e as crianças do extrato social a que pertence Huckleberry Finn.
O garoto que dá nome ao livro é sensacional. É uma espécie de "Pedrinho" (o personagem de Monteiro Lobato) norte-americano, com a diferença que esse é uma criança literalmente sem teto e que vive a maior parte da história descendo de jangada o rio Mississippi, na companhia de um escravo negro fugitivo, seu grande amigo, entre outros personagens que vão conhecendo nesse caminho nebuloso.
Hoje, quando eu lia o livro, durante o trajeto de volta para casa, e que, aliás, estou quase terminando, por um momento, eu levantei o rosto para olhar o entorno, os demais passageiros do trem, e eu sorria. Sentia todos os músculos do meu rosto relaxados. Esse é um livro para se ler, assim, embevecido. Ele nos provoca isso mesmo. Nele, ouvimos uma criança dizendo do mundo e o que ela vê pode ser triste, por vezes, na maior parte da história o é, mas essa visão é abençoada por toda uma fantasia que a protege, que a alivia dessa mesma dureza do mundo.
O trecho que me provocou a alegria incontida, foi já perto do fim da história, quando tendo encontrado Tow Sawyer, um outro garoto da mesma idade (seu amigo e personagem do livro anterior do autor
As aventuras de Tom Sawyer [1876]), ambos estão buscando juntos libertarem Jim, o negro que fora capturado, eles estão tramando um plano para essa nova aventura. Tom Sawyer tenta convencer Finn que não devem aproveitar as facilidades, e que de fato existem para libertação de Jim, mas devem fazer como nas grandes aventuras, onde os prisioneiros cavam poços com facas, uma coisa que, no contexto em que estão, é absolutamente desnecessária! rsrsrs
Então, resolvem que podem parar de cavar com as facas e passam a usar as picaretas à disposição, fingindo que cavam com as facas, e vejam que meigo Sawyer é, ao concordar com isso, bem como Finn, o personagem narrador, ao compreender as atitudes do amigo:
-Bem - diz ele -, dá pra desculpar as picaretas e o fingimento num caso como este. Se não desse, eu não ia aprovar, nem ia ficar olhando as regras sendo quebradas... porque certo é certo, e errado é errado, e não tem essa de alguém fazer uma coisa errada quando ele não é ignorante e sabe das coisas. Dava pra ocê
cavar com uma picareta para soltar Jim, sem
fingir, porque ocê não sabia das regras, mas não dava pra mim, porque eu conheço essas coisas. Me dá uma faca de mesa.
Ele tava com a sua, mas eu entregue a minha pra ele. Ele atirou a faca no chão e disse:
- Me dá uma faca de mesa
.
Não sabia o que fazer - mas aí pense. Andei por ali, entre as velhas ferramentas, peguei uma picareta e entreguei pra ele, e ele pegou a ferramente e começou a trabalhar, sem dizer palavra.
Ele foi sempre desse jeito. Cheio de princípios.