Hoje aconteceu comigo uma experiência tomadora.
Acordei sem poder ir trabalhar, pois como estaria diante de outras pessoas dando uma aula de língua portuguesa, não poderia correr o risco de ter meu dente saltando da boca em uma fala mais entusiasmada.
A verdade é que depois dos 40 e próximo dos 50 anos, quem não tem uma dentição muito sadia dificilmente mantém todos os dentes na boca. Fui então a uma dentista que conheço para a retirada de parte de mim.
Essa operação já começa enfadonha, porque se sabe que não se está ali para cuidar de dente, mas para tirar dente. Portanto, era mesmo um preâmbulo de luto. O dia amanhecera chuvoso e fiquei na porta do consultório de guarda-chuva aberto. A doutora, um amor, quando me viu saudou-me solícita e tudo terminou rápido para que eu saísse do consultório apenas com a esperança de marcar uma consulta com o especialista em implantes que ela me indicara.
No trabalho, contando para duas amigas o ocorrido e, por fim, a respeito de todo o pesar que eu sentia, uma delas, jornalista jovem mas muito experiente, disse-me que também sentiu esse mesmo vazio que eu sentia quando um dia ela perdera um dente, que quebrara acidentalmente.
Mais tarde enviou-me um texto lindo, pelo facebook, que me pareceu ter sido a única saída que ela encontrou, naquela ocasião, para expurgar tal sentimento:
Débora passava a língua pela gengiva crua onde outrora Deus lhe havia imputado um dente. Daqueles bem másculos e brancos. Mas agora ela estava ali, de gengivas à mostra e trabalhando a sua capacidade de ser mais pacienciosa com as coisas do corpo. E da fome.
- Mãe, não andes assim toda desdentada pela casa! Que coisa feia. O que teus netos vão pensar?
- Que hoje é quinta-feira, Elvira!
- Já te disse para parar com isso de marcar dia para se livrar da dentadura.
Débora amava as quintas-feiras. 'Rancava mesmo os dentes de homem e vivia como queria: sem dentes e com uma fome maturada. Não sabia se deveria conversar com a cozinheira sobre sopas ou sobre legumes refogados. Ainda não decidira se era importante dar outro passo. A gengiva tinha lhe dado muito e, aos poucos, foi entendendo o que existe por trás de um homem cansado e farto de dias.
Eu, então, elogiei o texto lindo de Victória Brotto, esse é o nome da autora.
E na nossa conversa on-line ela disse-me ter sido isso o que aprendeu quando quebrou seu dente.
Aprendi e escrevi esse texto.
Eu a congratulei pelo texto belíssimo, dizendo que a gente escreve mesmo é na urgência. Como que por expurgo do sofrimento íntimo. É verdade! E ela escrevera lindamente a respeito disso tudo.
É. vi que a perda de um dente representa um corpo cansado, farto de dias. E talvez seja bom perder os dentes pra vermos até onde vai nossa humanidade. Vermos o limite do corpo e a grandeza da alma. E juntarmos os dois. alma e corpo. numa só coisa.
Sim Victoria, é essa a lição que devo tirar dessa experiência, sem dúvida. Vou me agarrar a isso mesmo!
E também agarrar-me a esse apoio fecundo dos amigos, pois sem amigos, não importaria quantos dentes tivéssemos na boca: seríamos bem miseráveis.
Acordei sem poder ir trabalhar, pois como estaria diante de outras pessoas dando uma aula de língua portuguesa, não poderia correr o risco de ter meu dente saltando da boca em uma fala mais entusiasmada.
A verdade é que depois dos 40 e próximo dos 50 anos, quem não tem uma dentição muito sadia dificilmente mantém todos os dentes na boca. Fui então a uma dentista que conheço para a retirada de parte de mim.
Essa operação já começa enfadonha, porque se sabe que não se está ali para cuidar de dente, mas para tirar dente. Portanto, era mesmo um preâmbulo de luto. O dia amanhecera chuvoso e fiquei na porta do consultório de guarda-chuva aberto. A doutora, um amor, quando me viu saudou-me solícita e tudo terminou rápido para que eu saísse do consultório apenas com a esperança de marcar uma consulta com o especialista em implantes que ela me indicara.
No trabalho, contando para duas amigas o ocorrido e, por fim, a respeito de todo o pesar que eu sentia, uma delas, jornalista jovem mas muito experiente, disse-me que também sentiu esse mesmo vazio que eu sentia quando um dia ela perdera um dente, que quebrara acidentalmente.
Mais tarde enviou-me um texto lindo, pelo facebook, que me pareceu ter sido a única saída que ela encontrou, naquela ocasião, para expurgar tal sentimento:
Débora passava a língua pela gengiva crua onde outrora Deus lhe havia imputado um dente. Daqueles bem másculos e brancos. Mas agora ela estava ali, de gengivas à mostra e trabalhando a sua capacidade de ser mais pacienciosa com as coisas do corpo. E da fome.
- Mãe, não andes assim toda desdentada pela casa! Que coisa feia. O que teus netos vão pensar?
- Que hoje é quinta-feira, Elvira!
- Já te disse para parar com isso de marcar dia para se livrar da dentadura.
Débora amava as quintas-feiras. 'Rancava mesmo os dentes de homem e vivia como queria: sem dentes e com uma fome maturada. Não sabia se deveria conversar com a cozinheira sobre sopas ou sobre legumes refogados. Ainda não decidira se era importante dar outro passo. A gengiva tinha lhe dado muito e, aos poucos, foi entendendo o que existe por trás de um homem cansado e farto de dias.
Eu, então, elogiei o texto lindo de Victória Brotto, esse é o nome da autora.
E na nossa conversa on-line ela disse-me ter sido isso o que aprendeu quando quebrou seu dente.
Aprendi e escrevi esse texto.
Eu a congratulei pelo texto belíssimo, dizendo que a gente escreve mesmo é na urgência. Como que por expurgo do sofrimento íntimo. É verdade! E ela escrevera lindamente a respeito disso tudo.
É. vi que a perda de um dente representa um corpo cansado, farto de dias. E talvez seja bom perder os dentes pra vermos até onde vai nossa humanidade. Vermos o limite do corpo e a grandeza da alma. E juntarmos os dois. alma e corpo. numa só coisa.
Sim Victoria, é essa a lição que devo tirar dessa experiência, sem dúvida. Vou me agarrar a isso mesmo!
E também agarrar-me a esse apoio fecundo dos amigos, pois sem amigos, não importaria quantos dentes tivéssemos na boca: seríamos bem miseráveis.