O livro Sexo e religião: do baile de virgens ao sexo sagrado homossexual,
do cientista da religião norueguês e professor da Universidade de Bergen, Dag
Øistein Endsjø, propicia aos seus leitores um prazer bastante peculiar, o de acompanhar
o desvelamento do vasto panorama que a obra situa em torno dos modos como a
sexualidade humana é idealizada pelas principais religiões do mundo
contemporâneo: Cristianismo, Judaísmo, Hinduísmo, Islamismo e Budismo. O livro
já foi traduzido para sete idiomas e este ano se deu seu lançamento no Brasil, onde
também assistimos ao debate em torno de temas polêmicos ligados à sexualidade,
por exemplo, na agenda política, quando candidatos cristãos conservadores e
candidatos pró-bandeiras do movimento LGBT se digladiaram, motivando ainda os desdobramentos
acerca de tais manifestações entre usuários das principais redes sociais na
internet. Portanto, encontrarmos este livro nas livrarias se reveste de um
caráter de necessidade.
O interesse da obra de Dag
Øistein Endsjø está justamente em questionar consensos. Nem sempre temas tabus
a respeito da sexualidade humana foram assim considerados pelas religiões, ou
antes, as origens de tais tabus ou mesmo do que hoje entendemos como
preconceitos podem perfeitamente apontar para reflexões necessárias, sobretudo na
direção da compreensão de que sexo e religião podem ser combinados de
diferentes maneiras e de que, portanto, máximas como “O judaísmo sempre foi...”
ou “O islã sempre foi...” não deixam de ter contrapontos muito produtivos, os
quais a própria disciplina histórica revela e que dizem respeito à maioria das
religiões na sua relação com a sexualidade.
Ao optar por não fazer uma
abordagem cronológica e tampouco não tomando cada religião à parte para
discorrer sobre o papel do sexo em cada uma, o pesquisador desperta ainda mais
nosso interesse na leitura da obra, pois ele a organiza em capítulos temáticos,
nos quais questões absolutamente contemporâneas são apresentadas a partir de
uma pletora de informações sobre como as diferentes religiões viram ou veem os
aspectos abordados. Assim, temos que alguns dos antecedentes, motivação e
crenças gerais por trás da paisagem complexa de atitudes religiosas em relação
ao sexo hoje, podem ser melhor compreendidos quando frente a uma análise mais
detida sobre textos sagrados, mitos antigos, declarações doutrinais, material
histórico, pesquisas de ontem e hoje sobre o comportamento sexual, além de uma
grande variedade de outras fontes que o autor analisa.
No capítulo inicial sua intenção é
compreender as fronteiras da própria religião: as religiões têm fronteiras e/ou
limites? Uma vez que determinada religião espelha uma ampla gama de abordagens
diante de diferentes tipos de sexo, até que ponto certas normas relativas à
sexualidade podem ser circunscritas a ela? No capítulo seguinte, o desafio é o
de compreender o que é o sexo para as religiões. A variação das definições do
que se considera sexual obedece o que as diferentes comunidades de fiéis
determinam, uma vez que, em essência, este é um fenômeno construído
culturalmente. Isso é o que permite que conservadores do talibã considerem os
tornozelos de uma mulher à mostra um crime que possa vir a ser punido, ou que,
em determinados círculos cristãos, a masturbação mútua entre jovens solteiros possa
vir a não ser considerada uma prática sexual propriamente.
O maior capítulo do livro é
dedicado ao tema do sexo heterossexual, que traz o sugestivo título de Bençãos e maldições da heterossexualidade.
Apesar de termos a falsa impressão de que o sexo heterossexual, por ser
amplamente aceito, possa parecer mais livre, no contexto religioso, isso não é
verdade. Segundo o autor, culpa, danação eterna e pena de morte são apenas
alguns exemplos do que aguarda aqueles “que não lograram se ater ao parceiro heterossexual correto, ao contexto correto e aos orifícios corretos”. As sessões do
capítulo são bastante elucidativas de até onde pode ir o cerceamento da
liberdade do fiel heterossexual: sexo pré-conjugal, casamento como instituição,
sexo obrigatório, sexo para fins de procriação, poligamia, sexo extraconjugal,
divórcio e, ainda, demais proibições e orifícios corporais. Ou seja, após a
análise de tal listagem, o que se conclui é que há poucas, senão nenhuma, áreas
do comportamento sexual que a religião não tentou regular. Além disso, Endsjø
considera que as regras para homens e mulheres são tão desiguais que mais
correto seria tratar separadamente da heterossexualidade masculina e da feminina,
ou seja, como categorias marcadamente distintas. Os homens sempre têm
prerrogativas na condução de sua experiência sexual na maior parte das
religiões.
No capítulo dedicado ao sexo
homossexual, Endsjø declara que não há nada no fenômeno religioso como tal que
forneça subsídios para que uma determinada religião seja homofóbica. Ele,
aliás, elenca exemplos na tradição budista ancestral, além da experiência
helênica, nas quais a homossexualidade foi amplamente abençoada. É evidente, no
Cristianismo, que Jesus jamais proferiu palavra contra o sexo homossexual,
embora as palavras de Paulo contra o mesmo sejam sempre lembradas de tempos em
tempos para justificar a execução de homossexuais, além de, evidentemente, a
narrativa de Sodoma e Gomorra no Antigo Testamento, que Endsjø nos esclarece foram
condenadas muito mais pela falta de hospitalidade que exerciam, pois ela era um
preceito importante no judaísmo de então. Os exemplos da perseguição aos
homossexuais promovida pelos cristãos são inúmeros no capítulo, e que ocorreram
ao longo de toda a história, apesar disso, talvez o mais chocante seja o do
século passado, quando os ideais cristãos serviram como ponto de partida para a
perseguição homossexual nazista e por que quem derrotou os nazistas foram os cristãos,
um grande contingente de homens homossexuais não foram libertados dos campos de
concentração, mas enviados para prisões para cumprir a pena a que os nazistas
os condenaram, ou seja, embora não tenham sido o único grupo a que os nazistas
perseguiram, foram o único cuja perseguição foi legitimada pelos aliados ao fim
da guerra.
A verdade é que, segundo Endsjø,
o reconhecimento religioso do casamento homossexual, o clamor pela pena de
morte, uma liberalização maior dos costumes sociais, o surgimento de grupos
religiosos homossexuais e um esforço crescente empreendido pelas religiões na
manutenção da discriminação formam um quadro bem complexo. No entanto, o que se
verifica também é que mesmo os mais conservadores são obrigados a recuar quando
convivem com fiéis da mesma religião dotados de outra visão e, portanto, mais
tolerantes em relação à homossexualidade. Além disso, embora a maioria dos
cristãos homofóbicos, por exemplo, feche os olhos à trajetória sangrenta da
perseguição aos homossexuais impingida pelo cristianismo durante séculos, quando
se toma consciência de que aquilo que é condenado não são mais meras figuras
abstratas, mas sim pessoas, nossos vizinhos, amigos, filhos e irmãos, o
tradicional preconceito cristão deixa de ser assimilado tão facilmente.
Contudo, a única conclusão possível deste capítulo é de que o leque de atitudes
religiosas em relação à homossexualidade é mais amplo hoje do que jamais foi e de
que não existe nenhuma visão da homossexualidade que não possa ser defendida
sob uma perspectiva religiosa.
O livro vai fechando seu escopo
de temáticas possíveis em torno do tema central da obra, em direção ao problema
do racismo sexo-religioso entre outras formas de discriminação e também da
visão do sexo, no contexto religioso, em cultos religiosos, sexo praticado com
divindades, e até após a morte, afinal, a existência de vida após a morte é um
tópico jamais contestado por nenhuma concepção religiosa (Endsjø acrescenta,
“bem como jamais comprovado”) e, portanto, reflete algumas das mesmas ideias
sexo-religiosas sobre as quais se fundamentam vários credos. Daí é que se
originaram ideias como a de que sexólatras habitam regiões infernais dantescas
ou ainda de que no arrependimento é possível alcançar o perdão de Deus, pois,
de acordo com o Alcorão, o paraíso tem oito portas, enquanto o inferno tem apenas
sete.
Perto do término do livro, no
capítulo dedicado às Prioridades Sexuais da Religião, o autor nos apresenta uma
rigorosa análise do problema central a que as religiões se veem atreladas: se
os fieis não mais seguirem suas regras pertinentes à vida sexual e, portanto, na
vida real e privada, esses mesmos fiéis podem passar a suspeitar de que não acreditam naquilo que professam, pois se
sequer se comportam como suas crenças tradicionalmente exigem que eles se
comportem! Mas, afinal, quais são as estratégias comuns adotadas pelos líderes
religiosos para aproximar as normas sexo-religiosas da vida real? Em primeiro
lugar é possível mudar as regras
completamente, caso dos cristãos em relação, por exemplo, ao racismo-sexual,
que sempre caracterizou parcelas consideráveis do cristianismo, mas cuja
alteração é um exemplo de uma modificação de tal sorte que leigos, e até o
próprio clero, acreditam que o modo como é hoje seja na verdade o modo original
da doutrina. Também é possível coagir
as pessoas a fazerem o que a doutrina determina. Essa foi a estratégia mais
adotada no passado e há inúmeros países que a empregam até hoje e sem nenhum
pudor. É evidente que esta estratégia é uma afronta direta aos direitos humanos
e, portanto, condenada pela ONU entre outras organizações. Outra possibilidade
que as religiões encontram como estratégia é a da simples expulsão das pessoas que não se comportam como as regras
determinam. Endsjø é irônico ao falar dela, pois nos diz que o problema aqui é
que talvez, nesse caso, as religiões tivessem que promover expulsões em massa
de fiéis. Por fim, é possível também a esses religiosos tão somente ignorar as discrepâncias entre preceitos
sexo-religiosos e comportamento, mas, como já vimos, isso estabelece a dúvida a
todo o complexo das crenças: se não preciso realmente obedecer tal preceito,
posso pôr em dúvida todos os outros.
Após
percorrer do modo mais abrangente os interstícios do tema a que se propôs
tratar, Endsjø é claro e taxativo ao nos lembrar que há três palavras que, ao
menos na realidade de um mundo democrático, precisam ser sempre consideradas:
livre-arbítrio, consentimento e respeito mútuos. Quando tais princípios são levados
em conta, dá-se ao indivíduo o direito de decidir até que ponto ele será ou não
governado por códigos de conduta sexo-religiosa e não teremos como determinante
o fenômeno de que alguns queiram controlar a vida sexual alheia. Simples assim.